Alameda da Universidade, Lisboa

O Aborto na Europa: um ponto da situação

19-02-2024


Os primeiros movimentos pela autonomia corporal da mulher remontam a séculos atrás, no entanto, a luta pelos direitos reprodutivos das mulheres apenas se torna, efetivamente, motivo de debate político e social efervescente com a Segunda Onda Feminista. Apesar de alguns países europeus já terem aprovado legislação de modo a ampliar a autonomia reprodutiva da mulher em décadas anteriores, notavelmente a União Soviética, primeiro Estado a legalizar o aborto, é na década de 60, uma época de culminação de movimentos revolucionários e sociais, que a generalidade dos países europeus progride em termos de direitos reprodutivos. As feministas que sucederam as sufragistas, com todos os seus defeitos, notavelmente entenderam que a autonomia corporal e os direitos reprodutivos estavam intimamente e intrinsecamente ligados à emancipação da mulher. Por sua vez, argumentavam que a legalização do aborto, assim como dos métodos contracetivos, era central para a liberdade feminina e a luta contra a desigualdade, ao ter controlo sobre a sua reprodução, a mulher consegue atingir verdadeira autonomia económica, consegue libertar-se, de certa forma, da divisão sexual do trabalho e dos moldes sociais tradicionais, consegue usufruir da sua sexualidade. Desta forma, é impossível falar de igualdade de género, de feminismo ou de direitos das mulheres, isto é, direitos humanos, sem abordar a saúde e direitos reprodutivos e sexuais.

Recentemente, um dos países politicamente mais influentes da Europa tem-se louvadamente empenhado na proteção dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. França está cada vez mais próxima de ser o primeiro país do mundo a incorporar o direito ao aborto na sua constituição. A Assembleia Nacional Francesa, câmara baixa do parlamento francês, aprovou o projeto de lei que prevê a garantia da liberdade das mulheres de efetuar um aborto na lei mais fundamental do Estado, tendo o voto por parte dos deputados sido praticamente unânime. Não obstante, para a emenda constitucional ser efetivamente realizada, esta terá de ser subscrita pelo Senado, câmara alta do parlamento, e, posteriormente, terá de ser aprovada por referendo ou por maioria de três quintos numa sessão conjunta com as duas câmaras. Apesar do apoio da emenda ser menor entre o Senado do que a Assembleia, as críticas são essencialmente dirigidas às especificidades do texto, e não à proposta em si. Semelhantemente, nenhum dos principais partidos políticos franceses se opõe veementemente nem ao aborto, nem à sua proteção na constituição. Ou seja, é bastante possível que esta importante iniciativa francesa se venha a concretizar com mínima contestação, e que, potencialmente, inspire semelhante ação europeia e mundial.

A incorporação do direito do aborto na constituição francesa, tal como reiteradamente sublinhado por Emmanuel Macron, é uma resposta à atual onda de retrocessos no que toca aos direitos reprodutivos das mulheres, isto particularmente após a reversão da decisão do caso Roe v. Wade que estabelecia o direito do aborto nos EUA. Como tal, vários elementos do governo francês argumentaram contra a ideia de que a emenda constitucional seria desnecessária, isto ao frisar acertadamente que, no decorrer da história, direitos foram tomados como garantidos e rapidamente perdidos, pois, por vezes, nem as democracias mais robustas e progressistas resistem ao fanatismo religioso, ao conservadorismo, ao lobbying. De facto, este retrocesso histórico em matéria de direitos humanos nos EUA está muito mais próximo da Europa do que aparenta, e como tal, é deveras ingénuo assumir que o direito ao aborto nos diversos Estados europeus está garantido.

Nas últimas décadas, a tendência na Europa tem sido de liberalização da legislação em relação ao aborto e aos métodos contracetivos, porém, em anos mais recentes, a evolução acelerada e constante de forças de extrema-direita, nacionalistas, antifeministas, anti-escolha e profundamente religiosas, tem fomentado a amplificação de movimentos antiaborto que ameaçam os diretos reprodutivos e sexuais conquistados no passado e, naturalmente, a própria saúde e segurança das mulheres. Não obstante, o aborto é despenalizado na grande maioria dos países europeus e seria incorreto ignorar o facto de que a Europa dispõe dos melhores quadros legais no que diz respeito a direitos reprodutivos quando comparada com o resto do globo. Mesmo assim, o acesso ao aborto na Europa para mulheres, adolescentes e crianças é ainda, de certa forma, limitada. Apesar de uma minoria, vários países europeus, membros da União Europeia, mantêm legislações altamente restritivas relativamente ao aborto.

Malta era o único país da UE onde o aborto era ilícito independentemente das circunstâncias, isto até que, recentemente, perante o caso de uma turista que foi negada tratamento médico enquanto sofria um aborto espontâneo, o governo maltês viu-se impelido a reavaliar a sua legislação, sem surpresas por parte do país altamente católico, apenas as menores alterações possíveis foram realizadas. Casos como o referido demonstram como o acesso ao aborto é essencial à saúde das mulheres e revela como os governos só se sentem compelidos a agir após a vida de uma mulher já estar em perigo, ou melhor, quando são alvo de críticas públicas e internacionais. Semelhantemente, a Polónia tem sido dos casos mais preocupantes no que toca ao retrocesso dos direitos reprodutivos na UE. O governo nacionalista de extrema-direita que governou a Polónia até recentemente criminalizou quase completamente o aborto, sendo apenas permitido em caso de violação, grave risco de saúde ou incesto. No seguimento da restrição, o governo polaco esforçou-se para indiciar qualquer pessoa que ilegalmente fornecesse ou auxiliasse um aborto, médicos e familiares foram alvos de sucessivas acusações e ativistas e organizações opositoras enfrentaram repressão violenta. Exacerbando a situação, refugiadas ucranianas que chegavam às fronteiras da Polónia, tal como da Hungria, Roménia ou Eslováquia, enfrentaram barreiras, ou total impedimento, no acesso a serviços de saúde reprodutiva, isto mesmo sendo vítimas de agressão sexual. Entretanto, após intrépidos protestos, e sobretudo com a mudança de governo nas mais recentes eleições, felizmente é de esperar que a Polónia avance agora no sentido da ampliação do acesso aborto.

Apesar destes exemplos serem dos mais negativos entre o continente, a situação nos países mais autoproclamados progressistas não é ideal e o aborto, apesar de legal, é essencialmente inacessível para uma parte significativa da população feminina. Apesar de muitos países europeus disporem de bons quadros legais no que toca ao aborto, na prática, a mulher ainda enfrenta obstáculos. Em Itália e Portugal por exemplo, existem regiões inteiras sem quaisquer instalações que realizam abortos, ademais, grande parte dos profissionais de saúde nos hospitais recusa-se a efetuar o procedimento por 'objeção moral ou religiosa', por conseguinte, há uma incapacidade crónica dos Estados de garantir na prática um direito consagrado na lei. Do mesmo modo, a maioria dos países impõe procedimentos medicamente desnecessários como sessões de aconselhamento tendencioso obrigatórias, longos períodos de espera e necessidade de autorização parental, o que põe em causa os direitos reprodutivos legalmente previstos. Adicionalmente, o aborto, ao não ser coberto pelos respetivos serviços nacionais de saúde, torna-se inacessível às classes mais desfavorecidas, minorias étnicas e refugiados, revelando-se assim como um privilégio em vez de um direito.

Desta forma, infelizmente, torna-se claro que a autonomia corporal da mulher continua tópico de discussão em vez de direito inalienável, é evidente que o corpo da mulher permanece objeto de governação em vez de indiscutivelmente livre e próprio. Mas ainda há otimismo entre a angústia e desilusão. Para além da iniciativa francesa, os governos, por exemplo, de Espanha, da Finlândia e da Dinamarca têm contribuído para a simplificação das regras sobre o aborto nos respetivos Estados. Ao nível da União Europeia, há muito que é discutida, e expressivamente apoiada pela generalidade do Parlamento Europeu, a inclusão dos direitos reprodutivos, particularmente do aborto, na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. No âmbito do progresso e da segurança, permanece então imperativo que os Estados, assim como as organizações internacionais, continuem a codificar os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres para os proteger destas ameaças contemporâneas. Educação sexual de qualidade e o acesso a contracetivos modernos são igualmente imprescindíveis nesta luta. Por sua vez, a ilegalização do aborto não significa a cessação da sua prática, significa o aumento da mortalidade feminina. É revoltante o facto de tantas pessoas ainda não usufruírem da totalidade dos seus direitos humanos por caprichos ideológicos, pela propagação de mitos médicos, pela desigualdade económica e racial, pela valorização da crença religiosa acima da dignidade da mulher. Tempo após tempo somos relembrados que a mulher continua indivíduo de segunda classe, cujo controlo sobre o próprio corpo é deliberado entre parlamentos de homens. Assim, a luta pela total e inegável liberdade reprodutiva de todas as mulheres prolonga-se pelos séculos, mas, contra todos os retrocessos e obstáculos, persevera incansavelmente.


Mariana Santos

Núcleo de Estudos Europeus da Universidade de Lisboa
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