2024 – O Ano da Morte da Estabilidade – PARTE 1
Estimado leitor,
Hoje, iniciamos uma pequena rubrica a propósito dos sucessivos impasses que se têm verificado na governação da Região Autónoma da Madeira (RAM). Procurarei desmistificar os principais incidentes, opiniões controversas e, de forma muito breve e ligeira, analisar o futuro da política regional. Sem mais delongas, apresento os factos que desencadearam esta situação que é, no mínimo, inusitada.
22.09.2019 – Eleições Ininterruptas
Pela primeira vez na história, o Partido Social Democrata (PPD/PSD) não consegue vencer umas eleições regionais na Madeira com maioria absoluta, o que obriga o partido a realizar um acordo, neste caso, de governo com o Centro Democrático Social (CDS-PP), totalizando 24 mandatos, em 47. As exigências dos centristas foram excessivas e não caíram bem no cerne dos sociais-democratas, sobretudo por força da fraca votação obtida – pouco mais de 8 mil votos e 3 deputados eleitos. Assim sendo, o partido que à data era liderado por Rui Barreto teve 2 lugares no executivo madeirense – Secretaria Regional da Economia, com o próprio líder centrista a ser o escolhido, e Secretaria Regional do Mar e Pescas, com Teófilo Cunha, até então, Presidente da Câmara Municipal de Santana. Para além destes cargos, consegue a Presidência da Assembleia Legislativa (ALRAM), entregue a José Manuel Rodrigues, abdicando o PPD/PSD do anterior Presidente, José Tranquada Gomes, que se retirou da política ativa, depois de renunciar ao cargo de deputado regional. Apesar de este governo de coligação ter perdido alguma força, o acordo manteve-se até ao fim, naquele que foi o maior governo até então, com onze Secretarias Regionais.
Não obstante, as forças políticas de esquerda sonharam com um possível acordo, ainda que fosse difícil consumá-lo, uma vez que seria necessário o apoio – ou abstenção, pelo menos – dos centristas para realizá-lo. Depois da saída de Paulo Cafôfo da Câmara Municipal do Funchal – uma promessa que não cumpriu aquando das Autárquicas 2017 –, para se candidatar à presidência do Governo Regional pelo Partido Socialista (PS), houve uma grande movimentação e convergência interna, para tentar derrotar o candidato Miguel Albuquerque em 2019. Efetivamente, não ficou longe de o concretizar, pois veio a conquistar 19 mandatos, contra 21 do PPD/PSD. Se uma coligação com os Juntos Pelo Povo (JPP), um partido essencialmente regional, parecia possível, a necessidade de incluir mais dois deputados era mais difícil, pois teria de contar com o apoio do CDS-PP, ainda que à data fosse o principal partido da oposição. Desta forma, o deputado único eleito pela Coligação Democrática Unitária (CDU) não seria necessário para a formação de um governo liderado pelos socialistas. Porém, consta que as negociações chegaram a acontecer, mas a possibilidade de os centristas formarem governo com o PPD/PSD acabou por ser privilegiada.
24.09.2023 – Eleições Ininterruptas
Após PPD/PSD e CDS-PP se coligarem previamente em alguns atos eleitorais, o acordo consolidou-se e, na esperança de conquistarem uma maioria absoluta, decidem mantê-lo nas Regionais 2023. A noite foi muito agitada, sobretudo com a entrada de novos partidos na ALRAM – CHEGA (CH), que elegeu 4 deputados, Iniciativa Liberal (IL) e PESSOAS-ANIMAIS-NATUREZA (PAN), que elegeram 1 deputado cada – e com o regresso do Bloco de Esquerda (BE). Assim sendo, a Coligação SOMOS MADEIRA (PPD/PSD.CDS-PP) conquistou 23 mandatos, insuficientes para a maioria absoluta, algo que foi solucionado com um acordo de incidência parlamentar com a deputada única Mónica Freitas (PAN), apesar das críticas da estrutura nacional do próprio partido. No entanto, a instabilidade estava patente desde o primeiro minuto, com a deputada a "ameaçar" que, a qualquer momento, poderia retirar o seu apoio ao governo – e aconteceu… No caderno de encargos constavam medidas como a implementação da taxa turística regional, atualização de apoio a rendas e a criação de casas de autonomização para as vítimas de violência doméstica (Expresso, edição online, 23.09.2023). O executivo pouco ou nada mudou, destaque apenas para a saída de Teófilo Cunha e a extinção da Secretaria que tutelava – que se fundiu com a de Economia, de Rui Barreto – e do Ambiente, que passou para a tutela da Agricultura. A Moção de Confiança ao Programa do XIV Governo Regional foi aprovada com 24 votos favoráveis e 23 contra.
Os socialistas já sem Paulo Cafôfo, que tinha renunciado ao cargo de Presidente do PS-Madeira, ao mandato de deputado na ALRAM e assumido a pasta das Comunidades no Governo de António Costa, e com o candidato sempre discreto, Sérgio Gonçalves, sofrem uma pesada derrota, perdendo oito deputados e alcançando apenas um total de onze mandatos, muito por culpa dos votos que foram depositados no JPP, que se consolidam como terceira força política, chegando aos cinco deputados. A possibilidade de o PS chegar ao poder era muito escassa – para não dizer impossível –, visto que o acordo teria de englobar sete forças políticas, desde a extrema-esquerda à extrema-direita. Face ao péssimo resultado neste ato eleitoral, Sérgio Gonçalves demite-se da liderança dos socialistas e, nas internas de dezembro de 2023, Paulo Cafôfo é eleito novamente presidente, não abdicando do cargo de Secretário de Estado – contra "as vontades" dos dirigentes de Lisboa. Mas o futuro não era risonho, muito por culpa das várias fações internas…
24.01.2024 – "Quarta-Feira Negra"
A Madeira acorda com uma megaoperação: 50 inspetores da Polícia Judiciária (PJ) viajaram num Hércules C-130 da Força Aérea Portuguesa (FAP), foram realizadas mais de 100 buscas e transportada cerca de uma tonelada de equipamento informático para a Região. No entanto, a "trapalhada" é total, o caos estava instalado… No meio de carros alugados, autocarros para todas as direções e mandados de busca, são detidas três pessoas: Pedro Calado, Presidente da Câmara Municipal do Funchal (CMF) à data e Vice-Presidente do Governo entre 2019 e 2021; Avelino Farinha, Presidente do Conselho de Administração do Grupo AFA – empresa do setor da construção e engenharia – e Custódio Correia, principal acionista da Socicorreia – empresa dedicada à construção civil.
É aqui que toda a confusão começa. As principais estações televisivas chegaram aos diversos locais das buscas – com repórteres vindos de Portugal Continental – antes dos próprios inspetores; os documentos começam a ser divulgados na internet – uns visivelmente falsos, outros nem tanto –; o Ministério Público (MP) perdido no meio de tanta fuga de informação. Mas o caos continua… só no dia 14 de fevereiro sai a decisão do juiz Jorge Bernardes de Melo e pasme-se, saem em liberdade, com termo de identidade e residência. Uma denúncia anónima provocou o caos completo no MP. Os pedidos de adiamento foram constantes, nem foram capazes de completar a redação da acusação num período razoável e, pelos vistos, a fraca argumentação também não convenceu o juiz de instrução. Três semanas para serem ouvidos! No meio de tanto comunicado, nada diziam – estavam mais preocupados em "tapar o sol com a peneira" e a tentar enganar os mais desatentos, dizendo: "não podemos ter medo de fazer o nosso trabalho" ou "a PJ viajou sozinha para a Madeira, sem Ministério Público e sem jornalistas (…) em total sigilo". Nem MP, nem PJ acertavam nas suas declarações, até que uma epifania – ou alguém com bom senso – recomendou aos seus líderes que se remetessem ao silêncio. No meio disto tudo, nunca se chegou a compreender ao certo o conteúdo das acusações. Aparentemente, dezenas de adjudicações em concursos públicos – envolvendo centenas de milhões de euros –, crimes de corrupção ativa e passiva, conceções de serviços de transporte público, projetos envolvendo a CMF e ainda a venda suspeita da Quinta do Arco a um fundo imobiliário, sendo que o proprietário da mesma era Miguel Albuquerque, Presidente do Governo Regional, que, entretanto, foi constituído arguido. A princípio, recusou pedir a demissão, mas, após muita contestação interna e ameaças dos partidos que suportavam o Governo Regional, acabou por apresentá-la no dia 26 de janeiro. Irineu Barreto, Representante da República para a RAM, aceita a demissão a 5 de fevereiro e no mesmo dia é publicado, em Diário da República, o decreto de exoneração. O Governo Regional estava em gestão, sem Orçamento previsto para 2024. Posto isto, seguiu-se a audiência aos partidos. O Conselho de Estado é ouvido e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, decide, a 27 de março, dissolver a ALRAM e convocar eleições antecipadas para 26 de maio de 2024.
26.05.2024 – Eleições Antecipadas
Breve resumo: pouco mudou, nada melhorou, tudo piorou! Pouco ou nada pode ser dito sobre este dia…
Miguel Albuquerque – que não pretendia recandidatar-se, até porque o PSD queria indicar outro candidato aquando da sua demissão sem provocar eleições – e os sociais-democratas são os mais votados, embora tivessem perdido dois mandatos; o CDS-PP mantém a sua representação com dois deputados, ainda que não estivessem coligados neste ato eleitoral; CH, IL e PAN mantêm a sua votação; a extrema-esquerda não consegue entrar no parlamento; o PS, novamente com Cafôfo como líder e mais dividido do que nunca, consegue a extraordinária proeza de obter mais 137 votos face ao ato eleitoral anterior, depois de todas as acusações imputadas a diversas figuras do PPD/PSD; a grande novidade da noite eleitoral foi o crescimento para nove mandatos dos JPP. No entanto, tudo não passava de uma brincadeira. Cafôfo já só via a possibilidade de uma jogada à la Costa, formando uma coligação com os "verdinhos" e mais uns poucos pelo caminho; Élvio Sousa, líder do JPP, "ia falar com os astros e as estrelas de noite e logo decidia na manhã seguinte"; os demais partidos nada adiantavam. Com pompa e circunstância, numa conferência de imprensa, os líderes de ambas as forças políticas anunciam um acordo de princípios pelas 20 horas do dia 27. Ao fim de 4 horas, tudo tinha ido "pelas canas adentro". Na sede do CH, o clima era tenso – é melhor não entrar em pormenores – e já havia desentendimentos com os deputados recém-eleitos.
A nossa história fica suspensa, precisamente, aos 27 dias do mês de maio de 2024.
Todavia, não posso deixar de redigir umas breves linhas sobre quais as dúvidas e incertezas relativas aos acontecimentos deste virar de ano. O Orçamento e Plano de Atividades do Governo Regional para 2025 foram rejeitados. Após a aprovação de uma moção de censura, o Governo caiu. Vamos para novas eleições? Ou Marcelo Rebelo de Sousa terá um truque na manga? Os partidos já foram ouvidos por Irineu Barreto no Palácio de São Lourenço, mas, na próxima terça-feira, dia 7 de janeiro, a partir das 13h, serão recebidos em Belém, para audiências com o Presidente da República e com o Representante para a Região.
Aqui entra o "futurismo". Estivemos – e talvez ainda estejamos – em época natalícia, mas a demora neste processo está à vista de todos. A moção de censura foi votada no dia 17 de dezembro. Como referido anteriormente, Marcelo só ouvirá os partidos em Belém no dia 7 de janeiro. Ainda não está agendado o Conselho de Estado. Sem dúvida de que está a "arrastar" esta situação o máximo possível. A existir eleições, só para meados de março, devido à necessidade de as convocar com a antecedência de 55 a 60 dias. Ontem, dia 5 de janeiro, Miguel Albuquerque afirmou que queria as eleições "o mais rápido possível" – apontando 9 de março para tal. Cafôfo também o exige. Mas com mais medo de congressos extraordinários e eleições internas antecipadas do que propriamente a pensar no sucesso das Regionais 2025. Pessoalmente, fico com o pressentimento de que Marcelo não quer provocar novas eleições antecipadas – as terceiras em pouco mais de ano e meio – e procurará uma outra solução. No entanto, "o menu é escasso". Eventualmente, "forçará" o PPD/PSD a entender-se com outros partidos e a apresentar um novo nome consensual para a presidência de forma imediata. Ou nomear uma figura independente, também consensual, para governar a Madeira nos próximos meses. Parece-me mais razoável a primeira opção, até porque Manuel António Correia já entregou uma petição, a fim de convocar novas eleições internas no PSD. Num eventual cenário de novo ato eleitoral antecipado, com os mesmos protagonistas, espera-se que a situação se agudize, por isso, não deve ser a opção predileta de Marcelo.
Aguardemos os novos capítulos.
Até breve,
Rodrigo Pimenta de Freitas
BIBLIOGRAFIA
https://www.dn.pt/sociedade/corrupcao-na-madeira-pedro-calado-avelino-farinha-e-custodio-correia-saem-em-liberdade
https://observador.pt/2024/01/24/policia-judiciaria-realiza-buscas-na-madeira-miguel-albuquerque-e-presidente-da-camara-do-funchal-entre-os-visados/
https://www.publico.pt/2024/01/30/sociedade/noticia/pj-madeira-nao-podemos-medo-trabalho-2078639
https://www.publico.pt/2024/02/05/politica/noticia/demissao-albuquerque-aceite-governo-madeira-fica-gestao-2079319