A guerra da sucessão

No passado dia 1 de março, realizou-se a primeira volta das Legislativas 2024 no Irão. Em disputa estavam os 290 assentos na Assembleia Consultiva Islâmica – 285 dos quais eleitos diretamente e 5 destinados a minorias religiosas, entre as quais zoroastristas, judeus, arménios do norte e do sul e cristãos caldeus assírios – sendo que, tal como seria de esperar, não foi possível chegar a uma maioria parlamentar, uma vez que o número de candidatos ascendia aos quinze mil, o dobro relativamente a 2020. Neste valor, incluíam-se cerca de mil e setecentos mulheres. Ainda assim, inicialmente, eram quase 50 mil os cidadãos que pretendiam concorrer, sendo que a maioria acabou desqualificada. Os mandatos têm a duração de quatro anos e os principais objetivos deste órgão são a supervisão do poder executivo e votação de alguns diplomas – nomeadamente tratados –, o que, no fundo, não traz grandes poderes relativamente à liderança de Ali Khamenei.
Segundo a Constituição de 1979, o Irão segue um regime presidencialista, em que o Presidente é o chefe de Governo do país, não obstante a que o líder supremo seja a figura mais importante. Acima de tudo, o Presidente é responsável pela escolha dos ministros que compõem o seu governo (sempre com a aprovação do Parlamento) e eventualmente, por alguns vice-presidentes que possa nomear. Pode, ainda, supervisionar as leis aprovadas pelos deputados no Parlamento, assinar tratados internacionais e administrar as colocações dos diplomatas no estrangeiro.
Já o líder supremo é o chefe de Estado do país, sendo eleito pela Assembleia dos Peritos para um mandato vitalício – a não ser que seja destituído – e é responsável por conduzir a política iraniana, nomeadamente moderar os poderes executivo, judicial e legislativo, tendo também competência para nomear a mais alta autoridade judicial do país ou demitir o Presidente. Para além disso, é o Comandante Supremo das Forças Armadas.
Quanto ao poder legislativo, baseia-se num órgão unicameral, com poderes para aprovar orçamentos, leis e tratados internacionais, podendo ainda sugerir ao Aiatola que demita o Presidente, caso dois terços dos deputados assim entendam. Todos os candidatos ao mandato de deputado têm de obter a validação do Conselho dos Guardiães.
Neste ato eleitoral, o nível de participação foi o mais baixo de sempre, rondando os escassos 41%, equivalendo a cerca de 25 milhões de eleitores, o que pode explicar a descrença no sistema político e uma revolta pelo contexto de grave crise económica, política e social, para além da degradação da segurança. Apesar disso, o Aiatola Khamenei, que havia criticado a abstenção elevada nas últimas eleições, afirmou que houve um "movimento épico e notável". Já o Presidente Raisi, afirmou que "esta presença, cheia de paixão e compreensão, foi mais um golpe para os teimosos opositores do Irão, depois do golpe histórico que receberam nos distúrbios do ano passado". Como forma de tentar diminuir a abstenção, o horário de votação ainda foi alargado por duas vezes.
Por outro lado, o reforço da presença dos conservadores nos boletins de voto também contribuiu para um afastamento de grande parte do eleitorado, uma vez que o fosso para uma política mais virada à vertente social é cada vez mais colocada em causa.
Neste processo elegia-se também a Assembleia de Peritos, que vai a votos a cada 8 anos e está mandatada, através do órgão clerical, para eleger o líder supremo.
Nota, ainda, para vários confrontos que decorreram durante o processo eleitoral, que resultaram em centenas de detidos, a maioria ativistas – entre os quais Narges Mohammadi, Nobel da Paz –, por alegados desacatos, clamando pelo fim de um sistema eleitoral "vergonhoso" e por estarem a tentar afastar a oposição deste processo.
Segundo a lei iraniana, o candidato, para poder ser eleito, deve ser cidadão do Irão, apoiar a República Islâmica, jurar lealdade pela sua Constituição, ser praticante do Islamismo – excluindo as minorias anteriormente mencionadas –, estar bem de saúde (inclui não ser portador de deficiência mental) e ter entre 30 e 75 anos. Se o cidadão apoia partidos ou organizações políticas ilegais, se tiver outra confissão religiosa (ou renunciado ao Islão), se tiver sido acusado de crimes como traição, corrupção, suborno, tráfico ou violação da lei islâmica, se for analfabeto, se tiver sido membro de governos antes de 1979 [Revolução Islâmica], se for proprietário de grandes terras ou se for toxicodependente, então, será automaticamente excluído do processo eleitoral.
Por ser um sistema eleitoral muito distinto do nosso, é importante tentar compreender as regras do mesmo, para que possam ser retiradas as ilações desta primeira volta. Em primeiro lugar, importa distinguir os diversos círculos eleitorais e a forma como se organiza a eleição nos mesmos: nos uninominais, um candidato para ser eleito na primeira volta, necessita de 20% dos votos – caso não haja ninguém com este valor, procede-se à segunda volta, com os dois candidatos mais votados. Nos plurinominais, elegem-se os deputados estipulados para cada qual, sendo que, caso não obtenha o mínimo exigido, realizar-se-á a segunda volta com o dobro dos candidatos em comparação com os assentos disponíveis – por exemplo, em Teerão, ficou por completar 16 assentos, pelo que o segundo turno terá 32 candidatos.
Nesta primeira volta, foram eleitos 245 candidatos, dos quais 200 tinham apoio de grupos conservadores, sobretudo após o "boicote" dos reformistas que haviam sido excluídos dos boletins de voto. Em dezasseis províncias – incluindo Teerão –, não se alcançou os 20% necessários para conseguir uma eleição e, portanto, realizar-se-á uma segunda volta entre os dois candidatos mais votados, a realizar-se no dia 1 de maio. Na verdade, nesta província, não houve nenhum reformista ou centrista eleito e tão pouco algum candidato deste espetro que tenha cumprido o requisito para concorrer à segunda volta.
Neste momento, a coligação SHANA, liderada por Gholam-Ali Haddad-Adel, um partido fundado em 2019, obteve o maior número de mandatos, com 76 deputados eleitos, seguida pela Aliança Popular das Forças da Revolução Islâmica, de Hamid Rasaee, com 57 deputados, pelo Conselho de Unidade, de Mohammad-Ali Movahedi Kermani, com 45 eleitos e pela Voz da Nação – partido mais moderado – com 40 assentos. Apenas 25 reformistas e 11 mulheres foram eleitos.
Relativamente à Assembleia de Peritos, esta é composta por 88 cidadãos, todos eles juristas e especialistas em jurisprudência islâmica xiita, por um mandato de oito anos, e terá um futuro bastante fundamental, uma vez que o líder supremo do país está com idade avançada – atualmente, com 86 anos –, o que poderá indiciar um processo de seleção do seu sucessor para breve. Apesar de ter outros poderes concedidos pela Constituição, como supervisionar e demitir o líder supremo, nos últimos anos, tem-se limitado a nomear os diferentes Aiatolá do Irão. Ao contrário do último processo, são cada vez menos os possíveis candidatos, atingindo apenas os 501, menos 300 do que em 2016. Após todo o processo de verificação de idoneidade, restaram 144 candidatos oficiais, o que se traduz numa fraca competitividade em muitas províncias do país – há um caso em que seis juristas concorrem por cinco vagas. O auge deste processo deu-se com a desqualificação do antigo presidente iraniano Hassan Rouhani, principal responsável pelo acordo nuclear em 2015 entre o Irão e as restantes potências mundiais, pois acredita-se que as posições moderadas, mesmo dentro dos partidos mais conservadores, são divergentes e poderão levar, num futuro próximo, a uma "rebelião", quando for necessário eleger um sucessor de Khamenei. Por outro lado, praticamente metade da nova composição é composta por estreantes, sobretudo cidadãos mais chegados ao atual Aiatolá. Mohammad Sadegh Amoli-Larijani, antigo Presidente do Supremo Tribunal e potencial sucessor de Khamanei, foi a grande surpresa da noite eleitoral, ao ter falhado a eleição para esta Assembleia. Quanto a possíveis sucessores, destaca-se Ebrahim Raisi, que foi reeleito, e o filho do atual supremo, Mojtaba Khamenei, que não ocupa, à data, qualquer cargo governativo.
A campanha, que decorreu entre 22 e 29 de fevereiro, ficou igualmente marcada por fortes acusações de populares, que afirmavam que as pessoas não tinham condições financeiras para sobreviver e que, muito dificilmente, a próxima configuração parlamentar conseguiria mudar este rumo. Esta indiferença e apatia do eleitorado, aliado ao afastamento (injustificado) de vários candidatos e de uma grave crise económica no país não ajudaram nos resultados eleitorais, uma vez que não permitiu a eleição de vários representantes de partidos opositores. Do lado executivo, o discurso passa pela existência de uma condenação a países estrangeiros, que desestabilizou o processo eleitoral e que provocou instabilidade interna. Ainda assim, as autoridades locais tentaram serenar os ânimos – embora se tenham registado cerca de 500 mortos – e adotaram medidas pouco encorajadoras, como o controlo sobre a indumentária feminina.
Com a certeza de que o destino do país não irá mudar radicalmente, caberá aos eleitores das províncias que vão a votos em maio escolher os últimos 45 deputados do seu Parlamento, sabendo, de antemão, que o extremismo conservador está cada vez mais presente no seu país e que, muito dificilmente, sairá do poder nos próximos tempos.
Rodrigo Freitas