Alameda da Universidade, Lisboa

A Vingança após a Segunda Guerra Mundial

09-05-2025
Alessandro Armignacco
Alessandro Armignacco


Autora: Filipa Alexandra


  • O legado da guerra

De modo a conseguirmos descrever e analisar a onda de vingança que varreu o continente europeu e as suas consequências e objetivos, é necessário compreender a lógica e os propósitos a que foi submetida essa vingança no pós-guerra.

Num ambiente onde as fronteiras foram dissolvidas, o governo, as escolas e as comunidades viam-se destruídas, a comunicação (seja através de jornais e cinema, seja a nível dos caminhos de ferro) e os bancos eram inexistentes, bem como a lei e a noção de propriedade devido ao desaparecimento das forças policiais e judiciárias, "não existe vergonha. Não existe moralidade. Apenas sobrevivência" (Continente Selvagem, Keith Lowe, p.16). Posto isto, era necessária a reconstrução praticamente total do continente. Havia, em certa parte, uma visão otimista desta reconstrução. "Stunde null" é a expressão alemã utilizada para referir o momento imediatamente a seguir ao final da guerra, "Hora zero". De facto, com o final da guerra e o afastamento das ditaduras e consequente aumento do número de governos democráticos, via-se uma luz ao fundo do túnel através da fundação de novos jornais e revistas, uma maior criatividade no que toca à literatura, música e arte. Todo este florescimento não teria sido possível sem a esperança e otimismo inerentes à condição humana. Deste modo, considera-se o ressurgimento da Europa, "qual fénix, das cinzas da destruição" (p.17), um renascimento a nível não só económico e político, como também espiritual e moral. Porém, este renascimento foi um processo demorado e trabalhoso em vários aspetos. Para além das dificuldades de reconstrução que iremos abordar, existiram também desigualdades relativas ao final oficial da guerra (na Polónia, por exemplo, alguns polacos consideram que se a guerra teve início com a invasão do território pelas tropas nazis e soviéticas, a mesma só acabou com a libertação polaca do governo comunista, em 1989, com a eleição da oposição democrática conhecida como "Solidariedade").

Antes de ser alcançada a reabilitação da Europa, o continente caiu na anarquia. A violência da guerra vertia no período depois da mesma. Havia, e há ainda, uma certa dificuldade em colocar em perspetiva real a tamanha destruição causada pela guerra, seja no seu aspeto quantitativo, seja qualitativo. Exemplos desta violência vão desde a criação do verbo "coventrieren", que significa destruir por completo, e que foi criado depois do ataque nazi à cidade inglesa de Coventry (1940), aos resultados devastadores do Blitz (setembro 1940 - maio 1941) que, depois de 9 meses de ataques, resultou em 43,500 civis mortos. Quanto mais a Leste, mais violência era sentida. Em Budapeste, 84% dos edifícios tinham sido destruídos, bem como 1700 vilas e cidades da União Soviética (714 delas ucranianas). Por todo o continente, o território era descrito por "pedaços de parede", "pilhas de escombros", de uma "melancolia indiscritível" e "quilómetro quadrado atrás de quilómetro quadrado de edifícios [que não eram mais do que] conchas vazias com as vigas retorcidas erguidas no ar [como] espantalhos (…)" (pp.31-32). Além desta destruição física dos territórios, havia uma arma de incrível crueldade utilizada pelas tropas nazis: a fome. Na Europa do Leste, a fraca alimentação de civis era uma das formas utilizadas para se cumprir o plano "Generalplan Ost", isto é, a garantia do espaço vital. Esta arma cruel apenas foi abrandada porque o Reich precisava da mão de obra. Porém, a violência pode ainda ser avaliada de outra forma: a ausência. A ausência mais óbvia seria a dos judeus e é sentida até aos dias de hoje. Famílias desapareceram por completo e nas que não desapareceram é quase impossível não sentir a ausência de algum familiar depois do Holocausto. A sobrevivência deste grupo étnico poderia não ser possível sem a salvaguarda das suas tradições e sem a firmeza de algumas outras nações: na Dinamarca, por exemplo, foi recusada a aprovação de qualquer lei antissemítica e foram evacuados milhares de judeus para a Suécia, país neutro, quando estes iam ser deportados pelas tropas nazis (fonte: United States Holocaust Memorial Museum).

As tensões étnicas e a violência no pós-guerra viram-se agravadas e era sentida uma necessidade de restabelecer entidades de autoridade e cargos importantes de agências externas como a Cruz Vermelha e as Nações Unidas, de modo a lidar com as consequências humanitárias dos conflitos da segunda metade do século XX. Estas tensões podiam ser vistas em aspetos que hoje consideraríamos absurdos e, depois da guerra, a discriminação passou a estar presente em todas as nações, talvez como forma de proteção, acabando por se disseminar um conjunto de ideais semelhantes aos que formaram o nazismo, mas partindo de diferentes etnias. Na Noruega, houve pedidos de deportação em massa de crianças alemãs por considerarem que estas eram violentas por natureza. A moralidade via-se completamente distorcida e a Europa procurava manter a homogeneidade étnica de cada território.

Esta agressividade tornara-se de tal forma normal na Europa, que o próprio Himmler, líder das SS desde 1929, reconheceu o efeito psicológico que as atrocidades cometidas pelos seus homens tinham em si mesmos e que, muitas vezes, era isso que levava à brutalização das SS, instruindo, então, os comandantes para controlarem esse aspeto de brutalidade, estando apenas preocupado com os efeitos mentais nos militares e não exatamente com as atrocidades cometidas pelos próprios e suas vítimas. Como consequência da normalização da violência, a delinquência infantil e juvenil aumentou substantivamente, seja por falta de condições como a fome e consequente necessidade de roubar, ou mesmo matar, para poderem comer, seja pela falta de supervisão familiar, sequela inevitável da mortalidade causada pela guerra.

  • A vingança

"Só nos restam duas palavras sagradas. Uma delas é «amor»; a outra «vingança»."

A presença da vingança depois da Segunda Guerra Mundial manifestava-se tanto individualmente como coletivamente.

Uma das formas de vingança utilizada foi a violência sexual. Para além da necessidade de vingança, o abuso do poder militar e a incapacidade de defesa dos civis levavam também à escalada deste tipo de violência. Eram violentos simplesmente porque podiam e porque não eram castigados. Esta agressividade aumentou, em certas partes, em 50%, mesmo nos territórios onde não havia combate, mas tendia a ser mais grave no rescaldo de confrontos intensos ou entre tropas mal disciplinadas (p.84). Era incomparavelmente pior nos países conquistados do que nos libertados, devido ao desejo de dominar e vingar. Neste aspeto, podemos ainda referir a divisão cultural entre as tropas ocupantes e os civis como incentivo a esta violência e terror. As mulheres alemãs, depois de anos de propaganda ariana, viram-se especialmente aterrorizadas quando sofriam destes ataques pelas tropas coloniais francesas. Aquando da invasão nazi à União Soviética, as tropas alemãs sentiam tal desprezo para com os "untermenschen" (isto é, pessoas consideradas inferiores pelos nazis, principalmente eslavos e judeus), que a violência escalava ainda mais do que na Europa Ocidental. Podemos ainda comparar a reação búlgara e romena à entrada do Exército Vermelho nos seus territórios. Visto que os primeiros partilhavam uma cultura e uma língua semelhante aos russos, as suas relações foram relativamente facilitadas, enquanto na Roménia, com diversas diferenças culturais, as mulheres sofreram muito mais. Depois da guerra, as mulheres continuavam a ser um alvo. Na Europa Ocidental, todas as que tinham tido contacto sexual, ou mesmo aquelas que tinham apenas prestado auxílio a soldados alemães, foram desprezadas, agredidas e abusadas. Em França, as mulheres que se descobriam ter tido relações com alemães eram chamadas de "colaboracionistas horizontais" e rapavam-lhes o cabelo para que estas fossem publicamente humilhadas. Estes rituais difundiram-se por toda a Europa. Esta era uma violência considerada "verdadeiramente medieval" (p.86). Apenas em Berlim, diz-se que cerca de 110 000 mulheres foram vítimas de violência sexual.

Como consequências deste aspeto violento, as doenças venéreas tiveram um aumento substantivo e foram realizados milhões de abortos ilegais, as mães que não o fizeram viviam as suas vidas ressentidas para com os seus filhos, frutos desta violência. Também os filhos nascidos de relações consentidas com alemães provocavam grande vergonha às comunidades e eram várias vezes agredidos. O estudo destas relações e os planos de ação realizados tiveram origem, principalmente, na Noruega. Por mais que desprezassem a "mistura" do sangue norueguês e alemão, também tentavam encontrar um lugar para eles na sociedade. Além do mais, a sociedade tentava apagar as relações com os alemães. Deste modo, os pais dos filhos da guerra não eram procurados nem para pagarem as pensões de alimentos. O objetivo era mesmo apagar qualquer conexão que pudessem ter sido criadas. Os efeitos psicológicos desta exploração sexual não só tocavam às vítimas da mesma, mas a todas as mulheres. A mensagem que era transmitida a nível global era de que nenhuma mulher estava segura e que aquele era o único valor que tinham. Os homens que tentavam impedir estes ataques eram mortos e, por isso, os que se viam impedidos de intervir, viram-se também afetados psicologicamente pelo que viam acontecer à sua volta e, ao regressarem às suas famílias, onde viam as suas mulheres, mães, filhas, entre outras, irreversivelmente quebradas. Esta violência contra as mulheres, e muitas vezes contra as crianças, causou graves danos à imagem, por exemplo, do Exército Vermelho, visto que as atrocidades que cometiam nas cidades e vilas alemãs não cumpriam qualquer objetivo militar.

A vingança depois da guerra pode ser vista de outra perspetiva. A prioridade neste período era a de reconstrução e reabilitação, e apesar das tentativas, seria impossível encontrar e julgar adequadamente todos os criminosos de guerra. Deste modo, a justiça partia, muitas vezes, da mão dos civis e, de modo a facilitar a mesma (a seus olhos), as populações na sua coletividade eram consideradas culpadas, alvos de vingança. Além disso, quando a relação entre o perpetrador e vítima se invertem, dá-se oportunidade para a vingança. As ações dos militares do Exército Vermelho são um exemplo de tal. Apesar da falta de motivação militar no que toca às ações contra alemães, as tropas sentiammuitas vezes a necessidade de vingar as suas famílias ou a sua nação, que havia sofrido às mãos das tropas nazis. Qualquer pessoa falante de alemão era humilhada, despojada e maltratada. Quando falamos das tropas americanas, à medida que estas foram descobrindo os campos de concentração, trabalho e de morte, o desprezo pelos alemães ia crescendo. Foi também deste modo que a vingança se descontrolou na Europa. Depois das atrocidades que os soldados descobriam, assassinavam qualquer agente das SS, mesmo que este se rendesse e quisesse, genuinamente ou não, redimir-se. Os soldados aliados viram-se mais poderosos e os alemães mais impotentes. Desta forma, rapidamente se perpetuou a vingança. Estes assassinatos eram de uma violência extrema, a sangue-frio, e muitas vezes realizados pelos prisioneiros que foram libertados com a ajuda dos soldados. Os prisioneiros de guerra eram, ainda, colocados em campos, sem acesso a água, comida e higiene e estavam cada vez mais fracos, para que perdessem "a alegria de combater de uma vez por todas" (p.160). Os ingleses, por sua vez, optaram por uma punição diferente. Depois da descoberta da crueldade no campo de Dachau, obrigaram os soldados alemães a enterrarem os corpos em decomposição das suas vítimas (inclusive sem qualquer tipo de proteção física) (p.125).

Esta necessidade de vingança como fio condutor das ações desenvolvidas no pós-guerra foi até utilizada como propaganda. Isto é, algumas causas políticas serviram-se da ideia de vingança para arrecadar apoiantes. Perante a descoberta do campo de concentração de Majdanek, em 1944, os soviéticos convidariam jornalistas para recolherem as evidências do terror causado pelas SS e partilhar o sentimento de horror e desprezo para com os alemães (fonte: Holocaust Encyclopedia). Em Belsen, os ingleses fizeram o mesmo. Rapidamente se disseminaram as imagens dos corpos e das condições deploráveis destes campos, tornando-se acessíveis nos cinemas de várias nações. A propaganda relativa ao terror alemão estende-se, também, ao aspeto de justificação da ação das tropas aliadas ao longo da guerra. Na época, e perante as recentes descobertas das ações dos soldados alemães, tudo o que os Aliados tinham feito durante a guerra passava a ser justificado aos olhos da maioria. Todos os danos causados ao território e à população alemã dificilmente seria criticado nesta altura, devido à exposição da crueldade destes campos.

Relativamente à vingança judaica, este grupo em específico, apesar de se ter vingado fisicamente dos alemães de diversas maneiras, procurou, de forma geral, cumprir a sua vingança através do afastamento total da Europa. Para muitos judeus, a vingança seria feita através da rejeição total da sua presença no continente. Apesar da intensidade daqueles que escolheram, de facto, a vingança física, a maioria dos membros deste grupo escolhiam, se possível, não só o afastamento do território em si, mas também evitar, digamos, descer ao nível dos seus agressores. Além disso, é muito comum que o grupo judaico faça os possíveis para se afastar de aspetos controversos de modo a evitar que seja sequer dada uma oportunidade de ataque a esta etnia.

Esta procura pela vingança estava também presente internamente. A sensação de a população ver entre si colaboracionistas causava uma revolta interna. Um exemplo muito claro disto é o conflito interno que se via em Itália. Fascistas foram perseguidos, humilhados e assassinados devido à sua participação e incentivo ao regime.

  • Os objetivos da vingança

Apesar da conotação negativa da vingança depois da Segunda Guerra Mundial, a mesma servia diversos propósitos. Este era um importante aspeto na consolidação da derrota da Alemanha por inteiro e era uma oportunidade de libertar a frustração que a comunidade sentia, devolvendo também às vítimas dos seus soldados uma sensação de restabelecimento de controlo e de equilíbrio moral, mesmo que as ações realizadas em nome da vingança fossem de uma imoralidade extrema.

Como já foi referido, um dos propósitos da vingança nesta época era a obrigação do cumprimento da justiça, isto é, como a população sentia uma incapacidade de a justiça oficial punir as atrocidades da guerra, tomavam as rédeas da mesma e faziam cumprir a justiça a seus olhos.

Pode ser considerado que a vingança foi um caminho seguido por apenas uma minoria, enquanto as restantes vítimas do Holocausto e da guerra se recusavam a tornar equivalente a mágoa causada principalmente pelos alemães, visto que não queriam perder a sua superioridade moral.  



[Este ensaio é uma adaptação de um trabalho da Unidade Curricular de Integração Europeia: Teorias e Instituições]

Núcleo de Estudos Europeus da Universidade de Lisboa
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