
As Eleições Legislativas da Eslováquia
É certo que, para aqueles cujo conhecimento acerca da Eslováquia é escasso, quer sobre o seu sistema político, quer sobre os actores políticos actuais (e históricos), assim como a configuração da realidade partidária, este artigo poderá ser um tanto ou quanto extenuante. Contudo, não querendo assumir uma postura demasiado pretensiosa em relação às minhas naturais habilidades para vos manter empenhados numa temática sobre a qual eu próprio não domino, quero desde já assumir a total responsabilidade por um eventual lapso na descrição da mesma, ou até mesmo pela incapacidade de conseguir firmar o vosso foco.
Posto isto, enquanto navegava pelos meandros da recente história política eslovaca, deparei-me com acontecimentos que iluminam de forma bastante interessante — adjectivação assumidamente opinativa — uma realidade política que, diria eu, possui contornos de uma certa complexidade. Não obstante a mesma, é possível constatar um padrão de maior volatilidade desde 2018, ano em que são assassinados Ján Kuciak e a sua noiva, Martina Kušnírová — estes procuravam descortinar uma linha de corrupção, fraude e evasão fiscal nas esferas do poder eslovaco. O assassínio destes dois jornalistas gerou uma enorme onda de insatisfação e revolta, culminando com a demissão do primeiro-ministro Robert Fico, líder do Smer. O Smer foi fundado em 1999, tendo inicialmente declarado uma posição centrista. Todavia, em menos de cinco anos assumiria uma disposição ideológica mais vincada, colocando-se à esquerda e reclamando uma herança intelectual social-democrata. Tem na sua moldura programática determinadas medidas que facilmente conseguimos descrever como sendo socialmente conservadoras, etnonacionalistas e, como tal, pan-eslavas — sendo possível reconhecer um claro apoio ao regime de Vladimir Putin, através da culpabilização dos norte-americanos, dos Estados-membros da UE e da Ucrânia pelo conflito a leste; asseverando que vencendo as eleições, e conseguindo formar governo, retiraria por completo o apoio aos ucranianos. Consegue eleger deputados pela primeira vez em 2002, tendo já participado em três soluções governativas. Actualmente, integra o grupo europeu dos Socialistas & Democratas.
Como estava a dizer, a turbulência política gerada pelo assassinato do casal de jornalistas não só forçou a demissão do então primeiro-ministro, como também forçou os eslovacos a assistirem a uma ausência de estabilidade política, a maior desde a dissolução do império soviético. Esta turbulenta instabilidade levou a que, em menos de cinco anos, quatro primeiros-ministros tomassem posse. O primeiro a fazê-lo foi Peter Pellegrini, então membro do Smer, que toma as rédeas da chefia do governo. Contudo, o incumbente perde as eleições de 2020. O novo vencedor, Igor Matovič, é líder do partido de centro-direita conservador OL'aNO (Obyčajní L'udia, que se traduz para inglês como Ordinary People), um partido fundado há muito menos tempo, em 2011, tendo conseguindo eleger deputados no ano seguinte à sua génese. Na senda da derrota eleitoral, Pellegrini abandona o Smer e funda o seu partido, o Hlas (traduzindo para português, Hlas significa "Voz"). Com matriz social-democrata que afirma desejar ser, como o nome indica, a hlas dos trabalhadores, é não só constituído pelo anterior primeiro-ministro, mas também por outros que com ele abandonaram o Smer. Regressando a Matovič, este lidera uma coligação de quatro partidos (além do seu: o SaS, Sloboda a Solidarita; o L'SNS; e, por último, o Sme Rodina).
De acordo com uma notícia do Politico, publicada a 28 de Março de 2021, a sua ineficiente e incapaz gestão da pandemia, nomeadamente a sua "decisão unilateral" de adquirir as vacinas russas Sputnik V, gerou uma incomportável crise política. Após a compra, membros dos restantes partidos da coligação afirmaram que se demitiriam se não houvesse uma alteração na composição ministerial do governo e se Matovič não se demitisse. Em apenas dez dias, seis ministros abandonaram as suas pastas, forçando assim a demissão do primeiro-ministro. Eduard Heger assumiria o cargo da presidência do governo. Contudo, esta alteração pouco fez para cessar as tensões internas (da coligação). Heger governaria durante mais tempo, dois anos e quarenta dias, mas a sua saída também foi forçada. O partido SaS teve um papel crucial na deposição do governo chefiado por Heger. O partido da "Solidariedade e Liberdade", liderado por Richard Sulík desde a sua fundação em 2009, defende uma menor intervenção governamental na economia, rejeitando abertamente a ideia de redistribuição da riqueza. Os deputados deste partido, juntamente com outros da oposição e três da coligação governativa, conseguiram a aprovação de uma moção de censura (conseguindo um total de 78 dos 76 necessários), levando assim à queda do governo de Heger. No início deste ano, a Presidente da República da Eslováquia, Zuzana Strapáková — eleita em 2019, é a primeira mulher a ocupar o cargo, sendo também a pessoa mais jovem a desempenhar funções presidenciais —, nomeou um governo interino chefiado por L´udovít Ódor para o interlúdio até às eleições seguintes. O currículo de Ódor levou a que a comunicação social e a opinião pública caracterizassem este governo temporário de apenas 5 meses (a nomeação é feita 5 meses antes das legislativas de 30 de Setembro) como sendo de natureza puramente tecnocrática. Vice-governador do Banco Nacional da Eslováquia, à data da sua nomeação, este economista politicamente independente foi seleccionado não só pela sua competência, mas também por terem sido escolhidas "pessoas que não serão candidatas nas próximas eleições legislativas", como disse a Presidente Zuzana.
Pois bem, regresso novamente, e de um modo bastante breve, a uma narrativa mais pessoal, menos descritiva. Seleccionei estes acontecimentos para ilustrar os acontecimentos que considero serem os mais assinaláveis na vida política dos eslovacos dos últimos anos. Não mencionei outros partidos candidatos por não considerar relevante para esta descrição. Mas não, não me deixo ficar por aqui. A campanha eleitoral ficou dominada pela "questão ucraniana". A repartição e dicotomia "Pró vs Contra" serviu para encaixar as visões dos dois principais favoritos à chefia do governo. Quem são os favoritos? Um deles já será vosso conhecido. Refiro-me a Robert Fico do Smer. O outro, ainda não o mencionei, não por me ter esquecido, mas por querer assinalar de forma simbólica o quão recente é o protagonismo deste actor político; estou a falar de Michal Šimečka, do Progresívne Slovensko (PS). Como decidi não o fazer antes, apresentá-los-ei agora. O PS tem origem em 2017, assenta sobre uma base de centro-esquerda, ideologicamente social-liberal. Integra o grupo europeu Renew Europe. Não elegeu deputados em 2020, tendo obtido 6.96% dos votos (quando era necessário atingir os 7%). Quanto ao seu líder, Michal, tornou-se no primeiro eslovaco a ser eleito, em 2022, vice-presidente do Parlamento Europeu.
Como referi anteriormente, Fico garantiu que acabaria com o apoio militar eslovaco à Ucrânia. Este candidato opõe-se às sanções europeias à Rússia, considerando que os Estados Unidos e a União Europeia deveriam unir esforços na tentativa de forçar um acordo de paz. A sua proximidade ao chefe de governo húngaro, Viktor Orbán, também preocupa bastante os seus oponentes, pelo receio de que Fico replique a retórica empregue por Orbán. O ex-primeiro-ministro eslovaco reiterou a sua concordância em relação às afirmações de Putin sobre a natureza da chefia de Estado ucraniana — a de que esta possui uma natureza Nazi e de que a população russófona necessita de ser defendida.
Šimečka defendeu a manutenção da linha geral de política externa eslovaca, alinhada com a UE e com a OTAN.
À medida que vou escrevendo estes últimos dois parágrafos, os resultados eleitorais foram apurados, estando agora finalmente concluída a contagem dos votos. O Smer foi o partido mais votado, com 22.94%, e elegendo 42 deputados, tendo o Progresívne Slovensko ficado em segundo lugar, com 17.98%, e elegendo 32 deputados (ilustrado nas duas fotografias seguintes).


Este resultado "fragmentado" obriga o antigo primeiro-ministro a formar coligações governativas. Podem observar na fotografia seguinte algumas das possíveis soluções de coligação, sugeridas por analistas, que o líder do Smer poderá procurar conseguir.

Partilho convosco uma curiosidade da história demográfica do povo eslovaco. De acordo com o jornalista britânico do The Guardian, Jason Burke, mais de metade da população eslovaca habita "em pequenas cidades ou zonas rurais conservadoras e desconfia frequentemente dos valores progressistas cada vez mais difundidos nas suas cidades relativamente pequenas." Acrescenta que tanto o regime do Kremlin como Fico "ressoam entre aqueles que se sentem marginalizados desde o fim do regime comunista em 1989 (...)", "Muitos eleitores perderam empregos, viram comunidades outrora estáveis fragmentadas e certezas tranquilizadoras foram derrubadas. Décadas mais tarde, os idosos da Eslováquia sofrem com pensões lamentáveis e cuidados de saúde irregulares". De acordo ainda com este autor, Robert Fico teve "muito menos sucesso entre os jovens ou na relativamente rica Bratislava, que se transformou desde que a Eslováquia aderiu à UE e à OTAN em 2004.". Aqui, "muitos eleitores são atraídos pelo Progresívne Slovensko, que oferece reformas e mais ações contra a corrupção, com uma orientação pró-UE e pró-Ocidente reforçada e fortes salvaguardas para as minorias. Uma ligeira maioria dos candidatos do partido são mulheres — um contraste com o Smer, dominado pelos homens — e muito mais jovens (...)".
Termino esta exaustiva epopeia prosaica com o resultado eleitoral dos eslovacos emigrados. Após a leitura do artigo de Jason Burke no The Guardian, fiquei curioso por conhecer esta mesma configuração eleitoral. O resultado é, na minha óptica, interessante. Talvez vá precisamente ao encontro da tese sustentada por Burke no seu artigo. Como podem ver na imagem seguinte, o PS consegue a larga maioria dos votos, dos 58.779 eslovacos no estrangeiro que votaram nestas legislativas, o que, de acordo com esta mesma fonte (The Slovak Spectator), representa 80.5% dos eleitores registados de 104 países.

António Pescão