Alameda da Universidade, Lisboa

“Deus Está Morto, Marx Também, E Eu Não Me Sinto Lá Muito Bem”[1] —  Reflexão sobre a Conceção de Antigo e Moderno em Nostalgia do Absoluto

09-05-2025
Dimitry B.
Dimitry B.



Autora: Joana Leal


No outono de 1974, George Steiner proferiu um conjunto de cinco emissões radiofónicas que, posteriormente, foram reunidas na obra Nostalgia do absoluto; nela, encontramos uma complexa análise das repercussões da falência dos sistemas religiosos cristãos no mundo Ocidental moderno e as suas consequências. Steiner, reputado académico e pensador nascido em 1929 na capital francesa, procederá à explicação daquilo que considera serem as novas mitologias, cujo propósito é assumir o lugar deixado vago pela teologia cristã. A minha abordagem neste curto ensaio consistirá em fazer uso do argumento do autor nesta obra de modo a explicar como os casos expostos são um exemplo da tendência da contemporaneidade para descartar a herança dos Antigos e o motivo pelo qual discordo de tal perspetiva. Tentarei ainda traçar a relação entre a Antiguidade e o Moderno e a forma como ambos os elementos moldaram a construção de uma cultura e identidade europeia, ainda que muitos preconizem uma brecha entre estas duas dimensões

O Cristianismo desempenhou um papel crucial no desenvolvimento das sociedades ocidentais europeias, não apenas enquanto religião, mas também como teoria capaz de produzir ramificações em matéria política, cultural, social e económica. No século XIX, Nietzsche falava-nos da morte de Deus. O que quererá tal afirmação significar? Refere-se exatamente à dissipação do papel desempenhado pela teologia cristã nas sociedades ocidentais; a religião subsiste, no entanto reporta-se a uma esfera privada e muitos dos seus postulados não mais têm o significado e alcance de outrora. As causas para o declínio da religião na esfera pública são múltiplas, podem relacionar-se com a primazia atribuída ao racionalismo desde o Renascimento e o Iluminismo, o avanço tecnológico que levou à Revolução industrial, e que esta catalisou, ou até mesmo o surgimento de novas teorias, como a de Darwin, que colocavam em causa as teses criacionistas. Nas palavras de Steiner "as fés Cristãs […], que tinham organizado tanto da visão Ocidental da identidade do homem e da nossa função no mundo […], perderam a sua influência na sensibilidade e na existência quotidiana. […] A nascente da teologia, da convicção numa doutrina transcendente e sistemática, havia secado."[1]. As certezas, explicações e prerrogativas oferecidas pelo Cristianismo viram-se questionadas, até mesmo negadas, e, devido a este contexto de questionamento e de incerteza que foi suscitado, assistiu-se à emergência de uma profunda perda de identidade e de busca por outras respostas. É deste pressuposto que o argumento de George Steiner parte e é a partir desta busca por novas explicações que devolvam ao Homem o sentimento de completude (aquele que a religião fornecia) que surge aquilo que o autor denomina como novas mitologias.

Será, portanto, neste vácuo que as novas teorias do século XIX e XX, com caráter racional e científico, surgem. No entanto, atentemos àquilo para o qual o autor alude, uma vez que ele não se lhes refere apenas como teorias; pelo contrário, Steiner afirma que estas são "mitologias". Isto, pois, as teorias que foram formuladas "não são apenas tentativas para preencher o vazio deixado pela decadência da teologia Cristã e do dogma Cristão. Elas próprias são uma espécie de teologia substituta". Ao longo da obra, Steiner apresenta três principais teorias que vão assumir este carácter de teologia e de mitologia, nomeadamente o marxismo, a psicanálise freudiana e a antropologia estrutural de Lévi-Strauss. Para terem tal caracterização, Steiner sustenta que elas devem apresentar uma série de características: terem um atributo de totalidade; deterem uma forma clara de continuidade, ou seja, início, desenvolvimento e um final; e, por último, carregar atributos e traços distintivos face às demais. Com base nisto, o autor explica o modo como estas teorias científicas se tornam elas próprias uma espécie de nova teologia que vai ser capaz de responder aos mesmos anseios que a teologia cristã, ainda que os seus autores neguem isto, preconizando um total afastamento face à religião, uma vez que a consideram um dogma que o homem moderno deveria superar para que o seu progresso fosse potencializado.

George Steiner, de forma mais ou menos direta, inclui nesta obra uma abordagem bastante reveladora daquilo que tem sido a relação entre o Antigo e o Moderno. Aquando do início da análise destas novas mitologias, o autor deixa bastante claro que todas elas almejam estabelecer uma distância entre si e a religião tradicional cristã, pois os seus autores, e a sociedade à qual se reportam, percecionam a religião cristã — mais em específico o ordenamento social produzido pelo Cristianismo — como algo que foi ultrapassado, como um elemento do passado (sinónimo de decadência) e que se assume como irrelevante no presente, no tempo moderno, o tempo do progresso e da inovação. No entanto, estas novas teorias, apesar de puramente racionais, são elas próprias sintomáticas de um passado teológico, "aqueles grandes movimentos, aqueles grandes gestos de imaginação que tentaram substituir a religião no Ocidente, e o Cristianismo em particular, são bastante semelhantes às Igrejas, às teologias que querem substituir".

É passível de se sustentar que Steiner, lato sensu, está também a aludir para a forma como a Modernidade tem entendido a Antiguidade. Isto é, em prol de uma visão de progresso, vemos um crescente descarte daquilo que é a nossa herança cultural e histórica, baseado em argumentos como a superioridade do desenvolvimento do Homem Moderno face ao Antigo, ou à necessidade de criar referências que sustentem de forma mais adequada e melhor a sociedade moderna. De uma forma geral, é como se fosse estabelecida uma relação direta entre o progresso científico e tecnológico e o progresso humanístico, o que se traduziria no descarte da influência e importância das obras que se reportam à Antiguidade. O que aqueles que preconizam esta interpretação falham em entender é que as repercussões do passado cultural não podem ser recusadas ou ignoradas, são elas que nos dão os fundamentos para uma sociedade mais completa e ordenada — consumar a superioridade do Moderno face ao Antigo e descartar este último é condenar a Humanidade, em específico a Europa, a uma perda de identidade catastrófica e com repercussões em múltiplos ramos sociais.

Há um outro contexto em que Steiner demonstra mais uma vez esta situação e que considero relevante devido às semelhanças que tem com fenómenos sociais atuais: "a sensação Ocidental de fracasso, de potencial caos sociopolítico também causou uma repulsa contra o centralismo étnico e cultural que caracteriza o pensamento Europeu e Anglo-Saxónico desde a Atenas Antiga até meados dos anos 20 do século XX". Face ao flagelo de duas guerras mundiais, à catástrofe do holocausto e à desumanização inerente a fenómenos como o colonialismo e a exploração desenfreada dos recursos naturais, muitos europeus decidiram abraçar outras culturas e tradições (por exemplo, asiáticas, ameríndias e africanas) ou embarcar por uma absoluta negação desse passado, uma vez que tinha sido este que deu espaço a que tais acontecimentos tomassem forma. Tal não me parece adequado, uma superação total da herança cultural europeia apenas culminaria numa maior perda de identidade e um vazio coletivo mais significativo. Sustento que a abordagem deveria ser a oposta, ou seja, remontar aos clássicos, às obras e aos mitos fundadores e interpretá-los de forma crítica com o propósito de melhor compreendermos a nossa história. O progresso humano não tem necessariamente de ser um sinónimo de apagamento do passado, pelo contrário, é o Antigo que dá sustento ao Moderno e uma negação deste pressuposto deixa em total desordem a vivência em sociedade. Não proponho com isto uma visão estática da vivência humana, refém de um culto dogmático do passado, pelo contrário, defendo que a Antiguidade é relevante, pois permite que se construa uma base sólida de herança histórica e cultural capaz de promover um melhor entendimento do Homem, ajudando-nos a evitar que no futuro se cometam os mesmos erros do passado. Assim, abre-se para possíveis melhorias, e, sobretudo, permite-se que não se gerem ruturas totais na construção da cultura. A herança cultural deve ser percecionada como um processo cumulativo e não como um substitutivo no qual a Modernidade é um sinónimo de superioridade face à Antiguidade.

No entanto, regressemos à análise das três grandes teorias que Steiner refere e o motivo para ele as considerar como novas teologias. Na ótica do autor, o marxismo não é apenas uma ideologia que confere um determinado modo de ação revolucionária que permite a criação de um novo sistema político. Da mesma forma que a psicanálise freudiana não é um mero ramo da psicologia e a teoria antropológica desenvolvida por Strauss não tenta apenas estudar a humanidade. Estamos aqui perante teorias que procuram explicar a história do homem, incluindo a sua origem e o seu futuro; são teorizações que vão ao âmago da natureza humana e da sua vivência em sociedade e que conferem não só uma resposta àquilo que a envolve, como também um desfecho profético relativo ao seu futuro. Face à falência do Cristianismo, estas conjunturas sucedem em reordenar tudo aquilo que a morte de Deus desagregou; se há um Homem "esfaimado por profecias garantidas", há também um conjunto de novas teologias que conseguem preencher essa ausência (ainda que de forma passageira).

Relativamente à análise destas teorias, George Steiner desperta-nos para o facto de estas fazerem referência a mitos da Antiguidade Clássica bastante conhecidos e reproduzidos ao longo do tempo e também a elementos presentes na teologia cristã, como o pecado original e o carácter messiânico e profético a esta religião inerente. O autor destaca o facto de Karl Marx sugerir uma auto-identificação com Prometeu, o titã grego que roubou o fogo dos deuses e o ofertou à humanidade, para que esta lhe conseguisse dar o uso necessário à sua sobrevivência. De igual forma, Marx, através da teorização do materialismo histórico-dialético estaria a entregar aos homens as ferramentas necessárias para se libertarem da opressão económica e poderem criar uma sociedade que culminaria, eventualmente, numa perfeita existência sem estado e classes. Sigmund Freud recorre ao mito do Rei Édipo para explicar a sua teoria de id, ego e superego e o modo como o conflito entre Eros e Thanatos marcava toda a existência humana, bem como o conflito entre a vontade de consumar os desejos carnais do homem e os obstáculos que a sociedade a isso impõe. Claude Lévi-Strauss faz uso de ambos estes mitos, no entanto, confere-lhes uma interpretação diferente e recorre-lhes de modo a tentar explicar a passagem do mundo biológico e animalesco para o mundo cultural e civilizado que influencia o comportamento do homem em sociedade — tal como Steiner explica, esta passagem na teoria antropológica de Strauss adquire uma dimensão quase trágica e é o que compele o Homem à destruição de si e dos demais.

Destaco estes aspetos não propriamente com o intuito de sintetizar a obra Nostalgia do Absoluto, mas sim porque os considero relevantes para uma breve compreensão da relação entre Antiguidade e Modernidade neste livro. Um destes aspetos é apresentado muito claramente por Steiner: estas são ideologias que, apesar de preconizarem uma nova narrativa face às do passado, buscam nos mitos justificações. No entanto, seria porventura produtivo compreender o motivo para estas teorias invocarem elementos religiosos (ainda que indiretamente) e míticos, quando os seus autores afirmam quererem distanciar-se da religião. Defendo que tal se relacione, mais uma vez, com a relação dinâmica entre Antiguidade e Modernidade, pois, se, numa vertente, tenta-se sustentar que a Antiguidade foi ultrapassada pela Modernidade, o que se destaca é que continua a existir uma necessidade de utilizar os elementos da Antiguidade para justificar estas novas teorias da Modernidade. Tal pode acontecer devido ao facto de se terem tornado bastante comuns no ordenamento social, logo utilizá-los confere autoridade ao argumento. Contudo também porque as construções culturais da antiguidade respondiam a uma necessidade humana e essa necessidade subsiste, logo seria natural utilizarem-se argumentos que, outrora, foram capazes de saciar esse questionamento.

Mas serão estas novas teorias suficientes? Tudo indica que não, tal como a teologia Cristã, a tese marxista entrou em falência, a psicanálise freudiana tem diversas falhas que, por vezes, chegam mesmo a impedir a sua aplicação, a tese antropológica de Strauss traduz-se num "irónico castigo" e várias outras ideologias e teorias seguem o mesmo percurso que estas. Talvez este fracasso seja um indício para a necessidade de alteração do modo como o Homem europeu moderno tem entendido o seu passado. Enquanto procurarmos descartar a herança que os Antigos nos deixaram para que, em nome do progresso, possamos construir um presente e um futuro nos quais reinem elementos que consideramos superiores, estaremos sempre a condenar a identidade coletiva europeia a uma errância constante. Não defendo que se deve apenas remontar às obras clássicas e descartar toda e qualquer nova construção de conhecimento, mas sim que as teorias modernas devem alterar a forma como percecionam o Antigo, passando a entendê-lo não como uma etapa de carácter inferior que deve ser ultrapassada, mas sim como uma etapa essencial e igualmente importante que irá sustentar o Moderno.

Não é possível escapar às raízes daquilo que é a cultura europeia, por este motivo é que as teorias referidas por Steiner em Nostalgia do Absoluto se tornaram elas mesmo como mitologias e novas teologias, ainda que os seus autores tivessem o propósito de fazer exatamente o contrário. Por outro lado, a herança cultural dos Antigos está de tal forma impressa no pensamento coletivo europeu, que estes autores recorreram a mitos ou a elementos da Antiguidade para explicarem a sua teoria. Deus está morto e porventura Marx também, no entanto isto não tem de condenar o povo europeu a uma perda de identidade total, talvez apenas seja necessário entender de um modo diferente a nossa relação com a herança cultural que os Antigos nos deixaram e, a partir dela, contruir uma modernidade diferente, na esperança de que os vindouros encararão a herança por nós deixada de igual forma.



[1] A tradução da presente citação e de todas as seguintes da obra Nostalgia do Absoluto foram feitas pela autora do ensaio, Joana Leal, do idioma original de publicação (inglês) para português.


Referências

Ernaux, A. (2020). Os Anos (M. E. Santos trad.). Porto Editora.

Steiner, G. (2004). Nostalgia for the Absolute. House of Anansi Press. (Texto original publicado em 1974).


[Este ensaio é uma adaptação de um trabalho para a Unidade Curricular de Tradição Clássica e Identidade Europeia] 


Núcleo de Estudos Europeus da Universidade de Lisboa
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