Eleições europeias 2024 — uma análise
Autor: Guilherme Matos
Passado mais de 1 mês de termos sido chamados às urnas, começo a escrever a análise dos resultados saídos da noite de 09 de junho. Voluntariei-me para escrever esta peça ainda a noite ia a meio, e comecei instantaneamente a recolher notas e dados que considerei relevantes para constarem no presente texto, mas cedo percebi que seria pouco rigoroso começar a analisar os resultados tendo passado tão pouco tempo desde o ato eleitoral – justamente porque ainda não havia resultados oficiais e finais na maioria dos países. Agora que já os temos, é possível fazer uma análise mais realista do fenómeno.
Como já se passou algum tempo (escrevo este texto inclusive depois da eleição da Presidente da Comissão Europeia), muito se passou neste período. Comprometo-me a abordar estritamente os temas relacionados com as eleições europeias e o que daí resultou – leia-se, não tecerei comentários acerca das eleições francesas ou das eleições inglesas, embora as primeiras tenham sido consequência direta do sufrágio do dia 09 –, fazendo uma leitura com o maior rigor possível e, como se trata de um espaço de opinião, exprimir a minha visão acerca dos factos.
Resultados eleitorais
Olhando para as notas que tirei da noite eleitoral e dos dias seguintes, tenho as seguintes projeções de lugares: Partido Popular Europeu (PPE), com 189; Sociais & Democratas (S&D), com 135; Renew Europe, com 83; Conservadores e Reformistas (ECR, na sigla em inglês), com 72; Identidade e Democracia (ID), com 58; Verdes, com 53; The Left, com 35. Enquanto estas projeções davam a impressão de que este seria o resultado final, celebrou-se o facto de, contrariamente ao indicado por algumas sondagens, os liberais (Renew) terem retido o terceiro lugar e com uma vantagem superior ao esperado face ao quarto lugar, e com base nisto criticaram-se as opiniões mais pessimistas que diziam que a Europa iria virar mais à direita.
É importante dizer que a União Europeia "virou" à direita em 1999, porque desde esse ano o PPE tem sido consecutivamente o maior grupo político no Parlamento Europeu – e também, uns anos depois, no Conselho Europeu, o que significa que é o grupo político com o maior número de partidos nos governos dos Estados-Membros – portanto, a meu ver, a previsão de uma Europa mais à direita estava incompleta: provavelmente o que se pretendia dizer era que teríamos um Parlamento Europeu com maior presença de uma direita radical e extremista. Apesar de isso não ter sido evidente na noite eleitoral (porque os resultados seriam aparentemente idênticos aos da legislatura anterior), houve sinais de que essa previsão poderia ter algum fundo de verdade, e passo a enumerá-los: o Freiheitliche Partei Österreich (FPÖ), de extrema-direita, venceu na Áustria; na Bélgica assistiu-se a um verdadeiro terramoto, com os partidos da direita mais radical e extremista a ficarem em 1º e 2º lugar, muito à frente do partido que então governava (liberal); incontornavelmente, o Rassemblement National (RN) ganhou estrondosamente as eleições em França, causando um terramoto político que levou à convocação das eleições que ocorreram recentemente; na Alemanha, o Alternative für Deutschland (AfD) ficou em segundo lugar, mas à frente de todos os partidos que compõem a coligação governamental; por fim, verdadeiramente sem surpresas, em Itália e na Hungria as eleições foram ganhas pelos partidos de governo que se encaixam na classificação vulgar de direita radical.
Apesar destes aparentes sinais, atualmente podemos dizer seguramente que houve um vencedor nas eleições europeias: foi o PPE, que tem 188 eurodeputados. Este foi o grupo com o maior número de eurodeputados eleitos nos seguintes países: Bulgária, Croácia, Chipre, Finlândia, Alemanha, Grécia, Lituânia, Luxemburgo, Polónia, Espanha, Eslovénia. Na Estónia, Malta e Suécia tiveram o mesmo número de votos que o S&D e, no caso da Estónia, também que o Renew. Apesar de só ter ganho em Portugal e na Roménia, o S&D garantiu o segundo lugar confortavelmente com 135 eurodeputados. Em termos de vencedores, importa ainda referir que o Renew, apesar de ter decrescido – e muito – o número de eurodeputados, foi o grupo político mais votado na Bélgica (apesar do que foi referido anteriormente), na Dinamarca (apesar da coligação entre Socialistas e Verdes ter vencido as eleições), na Irlanda e nos Países Baixos. Inicialmente, estes também beneficiaram da vitória obtida pelo Akce Nespokojených Občanů (ANO) na Chéquia, mas este trocou de grupo político — inicialmente para os Conservadores e Reformistas, depois para o recém-criado Patriotas pela Europa (PfE, na sigla em inglês).
O caso dos liberais é particularmente interessante porque o Renew Europe é apenas um novo grupo que representa uma ala política há muito existente na Europa – que são os liberais –, mas este grupo surgiu na sequência da fusão entre a antiga ALDE (Aliança de Liberais e Democratas pela Europa) e o Renaissance, do atual Presidente francês Emmanuel Macron, e é por isso que se nota uma clara predominância dos elementos do seus partidários neste. Além disso, o seu peso político também foi atingido na sequência dos resultados eleitorais em França: apesar de continuar a ter o peso político conferido por ser o partido do Chefe de Estado de um dos motores e principais países da União Europeia, a hecatombe eleitoral foi muito significativa. Assim, este grupo político passou do terceiro lugar (tanto nas projeções iniciais como nas sondagens) para quinto lugar. À sua frente ficaram os Conservadores e Reformistas e o "jovem" Patriotas pela Europa.
A respeito dos Conservadores e Reformistas, o seu resultado eleitoral foi muito estimulado pela vitória do Fratelli d'Italia, que lhe conferiu 24 dos seus 78 eurodeputados. Este grupo político foi muito beneficiado pelo período de integração dos partidos recém-eleitos para o Parlamento Europeu e que portanto passaram a integrar os grupos políticos, porque apenas venceram na Itália e na Letónia – mas alcançaram o segundo lugar em vários países. O mesmo que foi dito acerca do Renew Europe também pode ser dito acerca do ECR: este é, atualmente, um partido notoriamente unipessoal. No caso deste último, encontra-se muito submisso à vontade e às ambições políticas de Georgia Meloni.
Abordarei agora o fenómeno dos "Patriotas pela Europa". Na noite eleitoral verificou-se o que já era expectável, que foi a vitória do Fidesz na Hungria. Este partido saiu do PPE em 2021 (saiu por iniciativa própria antes de ser expulso) devido às consecutivas advertências acerca das violações do Estado de Direito praticadas por este mesmo partido enquanto governo nacional encabeçado por Viktor Orbán, e portanto estava "desalojado" politicamente e os seus 11 eurodeputados seriam úteis tanto para o ECR como para o (agora defunto) ID, embora numa primeira fase tenha sido mais evidente a aproximação ao ECR – na minha análise, a posição deste grupo com o Fidesz foi propositadamente ambígua, com o objetivo de não colocar em causa o processo de moderação de Meloni, que vinha em curso nos últimos anos para assim se tornar mais "praticável" aos olhos da direita moderada (PPE) – tendo havido até encontros entre Viktor Orbán e Georgia Meloni, e em fevereiro o primeiro-ministro húngaro disse que a adesão ao ECR seria feita após as eleições europeias. Mas o resultado foi diferente: juntamente com o partido checo ANO (então no ECR) e com o partido austríaco FPÖ (então no ID), Orbán fundou o "Patriotas pela Europa". Alegadamente, o que motivou o desenrolar dos acontecimentos foi a inclusão do partido romeno Alliance for the Union of Romanians (AUR) no ECR, o que levou os membros do Fidesz a considerarem inaceitável a "coabitação" com o partido romeno – são nacionalistas, defendem a união entre a Roménia e a Moldova e, segundo Orbán, têm posições "anti-húngaras".
Apesar de estes não cumprirem os requisitos para formarem um grupo político no Parlamento Europeu, rapidamente angariaram novos membros: VOX (Espanha, ECR), Partij voor de Vrijheid (Países Baixos, ID), Chega! (Portugal), Vlaams Belang (Bélgica, ID), RN (França, ID), entre outros. Com a adesão deste último – que havia vencido as eleições em França – o grupo que fora criado há umas semanas ascendeu ao terceiro lugar entre os grupos políticos. Assim, de forma significativa, este grupo foi o que mais eurodeputados elegeu nos seguintes países: Hungria, França, Chéquia e Áustria.
Outro fenómeno que surgiu nas últimas semanas foi o "Europa para Nações Soberanas", fundado pelo AfD que tinha sido recentemente expulso do ID devido aos comentários feitos a propósito dos agentes das forças SS, o que levou Marine le Pen a recusar estar no mesmo grupo que o partido de extrema-direita alemão. Este grupo é o mais pequeno da atual legislatura (conta com 25 eurodeputados)
Por fim, falando sobre os Verdes e a Esquerda Unida (The Left), a propósito do primeiro é notório o resultado obtido na Alemanha: foram o segundo grupo europeu que mais eurodeputados elegeu, tendo elegido 15 e ficando à frente do S&D e do ENS. Em termos gerais, os Verdes mantiveram o número de deputados comparativamente à legislatura 2019-2024 (53), enquanto o The Left cresceu acima do que se esperava, tendo alcançado os 46 eurodeputados.
Tendo já aflorado os resultados, a verdade é que nenhuma análise de resultados eleitorais é bem-sucedida se não atendermos ao fator que por vezes é o grande decisor: a abstenção. A abstenção ao nível europeu rondou os 49%, mas este número, sendo uma média, comporta realidades bastante distintas, ao que dou particular destaque ao caso belga cuja abstenção foi de 11% e, no sentido oposto, o caso croata cuja abstenção rondou os 89%.
Na sequência das eleições
Ainda se estavam a digerir os resultados eleitorais e já se falava do próximo passo: a distribuição dos cargos de topo da União Europeia. Segundo as projeções iniciais, a normal distribuição seria pacífica: os 3 cargos para os 3 partidos mais votados que são os partidos considerados europeístas. Mas como o ECR ultrapassou em número de eurodeputados o Renew, e como a Primeira-Ministra italiana Georgia Meloni (muito reforçada após as eleições) sentiu que deveria ser ouvida a respeito da atribuição dos cargos, uma tarefa que já envolvia negociações delicadas tornou-se ainda mais atribulada. No final, chegou-se a um consenso: Ursula von der Leyen (PPE, partido mais votado) como Presidente da Comissão Europeia; António Costa (S&D, segundo partido mais votado) como Presidente do Conselho Europeu; Kaja Kallas (Renew, então terceiro partido mais votado) como Alta Representante para a Política Externa e Segurança – no fundo, chefiar a diplomacia da União Europeia. A atribuição de lugares é feita entre os 3 partidos genuinamente europeístas, e por isso é que ocorreu desta forma. Georgia Meloni não ficou contente com esta distribuição, e manifestou-o votando contra Kaja Kallas e contra António Costa, mas abstendo-se sobre Ursula von der Leyen.
Tendo esta sido uma demonstração prática da famigerada "cerca sanitária" – isolar os partidos da direita não moderada dos cargos de poder –, podemos testemunhar outra aquando da eleição dos 14 vice-presidentes do Parlamento Europeu, só que desta vez incluiu-se o ECR do "lado bom": 5 vice-presidências para o S&D; 3 para o PPE; 2 para o Renew; 2 para o ECR; 1 para os Verdes; 1 para o The Left. Num caso onde não se notou uma "cerca sanitária" devido à natureza da questão foi no momento da eleição da Presidência do Parlamento Europeu, tendo sido reconduzida a incumbente Roberta Metsola (PPE) para os próximos 2 anos e meio (que é a duração do mandato do cargo) com uns surpreendentes 90% dos votos, provenientes até da direita mais extremista como forma destes apelarem ao diálogo com esta fação (argumento admitido pelos próprios, como por exemplo se vê nas declarações de António Tânger Correia, eurodeputado do Partido Chega!)
Conclusão
No começo do texto abordei as previsões que supunham que teríamos um Parlamento Europeu bastante mais à direita, e a verdade é que o resultado foi precisamente esse: dos 720 eurodeputados, 187 são do ECR, do ENS e dos Patriotas pela Europa. Contudo, os vaticínios cataclísmicos também não foram certeiros na análise, porque na totalidade dos eurodeputados, se descontarmos o The Left – que com frequência demonstra posições eurocéticas e anti-europeístas – e os "não alinhados", temos um total de 454 eurodeputados que concordam com os valores europeus e que darão continuidade ao trabalho levado a cabo na legislatura passada.
No momento em que escrevo este texto já se deu a eleição da Presidente da Comissão Europeia, e portanto já se afirmou que foi feito um balanço positivo do mandato de Ursula von der Leyen que lhe permitiu vencer por uma margem de 40 votos, face aos 9 da última eleição.
A análise final que faço dos resultados eleitorais é a de que os cidadãos europeus continuam crentes no projeto europeu, porque apesar dos terramotos ocorridos e de alguns resultados particulares, a vitória foi do europeísmo. Apesar de não ser perfeito, importa não desvalorizar o caráter extraordinário do projeto europeu e o quão benéfico tem sido para a maioria dos cidadãos, porque caso não o fosse, não seria dada a força aos partidos europeístas para que estes defendessem a União Europeia de quem a quer atacar.