Eleições para o Bundestag, 23 de fevereiro de 2025
Autor: Guilherme Matos
As eleições do dia 23 de fevereiro, marcadas após a dissolução do Bundestag (parlamento alemão), tiveram um resultado que foi ao encontro da previsão as sondagens. Os eleitores deram a vitória à CDU/CSU (união de partidos democratas-cristãos, de centro-direita), mas estes ficaram aquém de 30% dos votos; o segundo partido mais votado foi a Alternative für Deutschland (AfD, de extrema-direita), que obteve mais 1 milhão de votos comparativamente ao seu resultado em 2021, duplicando o seu resultado percentual, chegando assim ao patamar dos 20%; o SPD (sociais-democratas, centro esquerda), que fora o partido mais votado nas últimas eleições, caiu retumbantemente para o terceiro lugar, tendo obtido 16.4% dos votos. É possível constatar que a AfD foi o partido que mais cresceu, tendo aumentado a sua votação em cerca de 10.4%; o SPD foi o partido que mais perdeu, tendo sofrido uma quebra de 9.3% dos votos face a 2021. Independentemente dos resultados, considero que foi um momento eleitoral exemplar: a taxa de participação rondou os 85%. Quando os eleitores se deslocam às urnas, a democracia ganha.
Os pequenos partidos também foram notícia, designadamente porque alguns deixaram de ser tão pequenos como antes. O partido de esquerda Die Linke, classificado pela Euronews como sendo de extrema-esquerda, cresceu cerca de 8.8% (dados publicados pelo Observador), correspondendo essa percentagem a um total de 64 deputados. Este aumento significativo do número de votos em forças políticas de esquerda mais radical dá continuidade a uma tendência verificada nas eleições francesas. Tal como nestas, as forças radicais de esquerda aumentaram a sua votação em boa medida devido ao excelente desempenho na zona de Berlim – a Nouveau Front Populaire foi a força mais votada em Paris, e esta região foi decisiva para o seu bom desempenho eleitoral.
Destaco também dois casos de partidos pequenos, um cuja sobrevivência está ameaçada e outro que foi um destaque da noite eleitoral. O FDP (partido liberal), membro da coligação governativa que resultou das eleições de 2021 e cuja saída da aliança desencadeou estas eleições, não alcançou os 5% necessários para assegurar a manutenção no Bundestag. Este dado é relevante, porque seria de esperar que, caso estivesse no parlamento, integrasse a coligação governamental que se formará na senda destas eleições. O outro caso que merece atenção, a meu ver, é o da Aliança Sahra Wagenknecht (BSW), partido de extrema-esquerda, que obteve 4.9% dos votos, estando no limiar da presença no parlamento (5%). Apresentando-se como uma candidata da esquerda conservadora, esta candidatura unipessoal conseguiu obter votos junto dos eleitores tradicionais de todos os partidos, tendo sido particularmente eficaz a retirar votos aos demais partidos de esquerda.
No plano geral, o que temos é um sistema que, tendo sido bipartidário durante muitos anos, encontra-se neste momento numa fase em que o vencedor terá de governar em coligação com os vários partidos que existem – veja-se o que fez Olaf Scholz. Na realidade, a novidade destas eleições, e o grande obstáculo não é serem muitos partidos, mas sim existirem 3 partidos com pesos relevantes – CDU/CSU com 30%, AfD com 20% e SPD com 17% – o que se traduz na necessidade de se formar uma coligação governamental estável que consiga impedir que o Governo seja torpedeado por uma coligação negativa. A calculadora do Deutsch Welle (DW) mostra que existe um cenário em que não será possível terceiros derrubarem o governo, no cenário de uma coligação CDU/CSU-SPD.
Importa também fazermos uma análise geográfica e compararmos o mapa de 2021 com o de 2025. O mapa eleitoral alemão de 2021 demonstrava uma predominância do SPD a norte e a nordeste do país, também com alguma presença a oeste e a sudoeste; o sul votou esmagadoramente na CDU/CSU, tendo esta também conseguido um bom resultado a oeste; a AfD teve uma presença muito forte a leste. Em 2025, deparamo-nos com um resultado bastante diferente. A norte, a oeste, a sul e a sudeste, a vitória da CDU foi retumbante; o SPD conseguiu alguns resultados positivos, mas em muitos casos ficou como a terceira força mais votada; já a AfD comprovou a tendência que se tinha vindo a notar e saiu vitoriosa em quase todo o território a leste, correspondendo quase integralmente à antiga República Democrática da Alemanha. Em ambos os momentos eleitorais (2021 e 2025), Berlim constitui um fenómeno particular, tal como Paris. Em 2021 votou esmagadoramente nos Verdes; em 2025 votou esmagadoramente no Die Linke. Isto mostra que o eleitorado desta grande zona urbana tem uma tendência para votar mais à esquerda.
Para realizar esta análise, rodeei-me de dados publicados pela DW, que no dia 24 de fevereiro publicou um vasto conjunto de indicadores que nos ajudam a entender melhor esta eleição. O dado que destaco, que é sempre dos mais curiosos de analisar, é o da "migração dos eleitores". Comecemos pelo vencedor, a CDU. Ganhou cerca de 4 milhões de votos junto da abstenção, do FDP e do SPD, como seria de esperar; mesmo assim, perdeu 1 milhão de votos para a AfD. Por sua vez, a AfD atraiu eleitorado abstencionista (2 milhões), de antigos eleitores da CDU, mas também conseguiu cerca de 1 milhão e meio de votos junto do eleitorado do SPD e do FDP. O SPD perdeu eleitorado para quase todos os principais partidos, destacando-se, além do já mencionado, o milhão de votos que migraram para o BSW e para o Die Linke – mais uma vez, não é surpreendente. De todos os casos, as migrações eleitorais mais interessantes são as do BSW. Ganhou votos em toda a linha, atraindo mais eleitorado junto da abstenção e do SPD (800 mil votos ao todo, metade para cada fação); também conseguiu roubar eleitorado ao Die Linke num valor que ronda os 350 mil; surpreendentemente, conseguiu atrair 220 mil votos de eleitores da CDU/CSU e 260 mil votos de eleitores do FDP, o que constitui um fenómeno muito curioso; nem a AfD foi poupada, apesar de o número ser quase residual comparativamente aos outros valores.
Também é relevante ver como é que os eleitores votam mediante a sua faixa etária. Como ocorre noutros países da Europa, os mais jovens têm tendência para não votar nos partidos ditos centrais e, por isso, os partidos mais votados na faixa etária dos 18-24 anos foram, respetivamente, o Die Linke, com 25%, e a AfD, com 21%. A AfD obteve mais ou menos 20% dos votos em todas as faixas etárias, com exceção do eleitorado com idade superior a 70 anos. O Die Linke mostra uma tendência para captar menos eleitorado à medida que a idade aumenta, num processo onde o eleitorado alemão se revela parecido ao restante eleitorado: os partidos da esquerda menos moderada têm uma enorme tendência para captar o eleitorado jovem, mas não são tão apelativos para o eleitorado mais velho. De resto, tanto a CDU como o SPD vão crescendo em percentagem à medida que as idades aumentam, obtendo ambos os seus melhores números no eleitorado com mais de 70 anos – CDU com 42% e SPD com 25%. Ou seja, a ilação que tiramos destes números é a de que o eleitorado mais velho tem uma maior tendência para votar de forma mais conservadora, não no sentido ideológico do termo (não votam todos na CDU/CSU), mas no sentido de optar pelos partidos que apresentam ideologias e programas menos disruptivos do status quo, enquanto o eleitorado mais jovem apresenta um comportamento diametralmente oposto. Também não podemos descartar o facto de tanto o SPD como a CDU serem os partidos tradicionais e, portanto, muito suscetíveis ao voto "por inércia".
Se fizermos a divisão por género, vemos que as mulheres votaram menos à direita do que os homens, mas, mesmo assim, a CDU/CSU foi a força política na qual o eleitorado feminino mais votou. O mesmo acontece no eleitorado masculino, mas a diferença é que a percentagem de votos no Die Linke é menor (10% nas mulheres e 7% nos homens) e na AfD é maior (17% nas mulheres e 24% nos homens).
Por fim, gostava de me deter sobre um outro dado de suma relevância, que é a instrução. A AfD consegue obter 28% dos votos no eleitorado com o nível básico de instrução, mas, mesmo assim, fica atrás da CDU/CSU, que obteve 32% do eleitorado neste segmento. A diferença para o eleitorado mais instruído é muito significativa no caso do partido de extrema-direita, que conseguiu obter apenas 13% dos votos deste eleitorado, enquanto a CDU/CSU teve apenas uma variação de 5% (27% dos votos). O partido cuja diferença é mais significativa é Os Verdes, que obteve 5% dos votos no setor com menos instrução e 19% no setor com maior instrução. Não obstante o apresentado, recuso-me a retirar ilações simplistas e paternalistas acerca do voto dos eleitores com menos instrução: o voto nos partidos extremistas é fruto de uma conjugação mais complexa de fatores do que a simples falta de instrução, comportando outras dimensões, designadamente os problemas sociais que os votantes enfrentam. Considerar que uma pessoa vota em determinado partido simplesmente porque não tem o mesmo nível de instrução que outra constitui, a meu ver, uma análise elitista que não tem qualquer utilidade para uma análise eficaz do fenómeno.
Finda a exposição dos números, importa teorizarmos sobre eles. Uma análise fria e desapaixonada sobre os resultados desta eleição terá obrigatoriamente de concluir que o parlamento alemão está mais extremado do que antes, tanto à direita como à esquerda. Se é verdade que o partido de extrema-direita é a segunda força mais votada, também é verdade que os partidos de esquerda radical apresentaram ganhos muito significativos, fruto de uma fuga dos eleitores da esquerda moderada. Simultaneamente, e também para não cairmos na tentação de fazer análises apocalípticas, o que ocorreu demonstra algo bastante saudável num regime político democrático, que é a alternância: quando um partido não tem um bom desempenho governativo, ou quando os eleitores preferem mudança, votam no partido que lhes parece mais credível, que normalmente costuma ser o segundo maior partido. Foi isto que se sucedeu e, por isso, a CDU/CSU venceu as eleições.
O crescimento dos extremos é uma consequência das falhas dos partidos do centro em atender aos problemas das pessoas. Quando os eleitores deixam de sentir que os partidos tradicionais lutam pelos assuntos que mais intimamente lhes dizem respeito, existe uma tendência para que se virem para os partidos novos, mais vocais e expressivos nas suas reivindicações, que muitas vezes oferecem soluções aparentemente simples para problemas bastante complexos. Isto vê-se, por exemplo, na questão da (i)migração. Sem dúvida, este tema é o que mais tem sido debatido na sociedade alemã; os migrantes têm sido cada vez mais vistos com desconfiança e, em determinadas zonas da Alemanha, já não são muito bem-vindos. Também são comuns os relatos de pessoas que, mesmo estando dispostas a acolher os migrantes, confessam já não terem condições para oferecer o que seria considerado digno – veja-se a reportagem publicada no Expresso há cerca de 2 semanas, que relata este problema de forma muito clara. A imigração tem efetivamente sido percecionada como uma fonte de problemas para a Alemanha devido à sua dimensão excessiva e, por mais que os dados contradigam essa perceção, estes resultados eleitorais demonstram precisamente isso: a AfD, um partido que propõe uma política de "remigração", alcançou o segundo lugar. Não foi por acaso que o partido de extrema-direita venceu na região onde as pessoas têm um menor histórico de migrações – membros na família que foram emigrantes.
Isto justifica a ascensão da extrema-direita. E então a ascensão da esquerda radical? Bom, também não é segredo para ninguém que o famoso motor alemão tem passado por anos bastante difíceis. Com a alargamento do conflito na Ucrânia, há 3 anos, a Alemanha deixou de poder adquirir energia com os preços que adquiria antes, e a energia barata era a pedra basilar desta potência industrial. Simultaneamente, a concorrência feita pelas produções chinesas atinge brutalmente a economia alemã, que passou a ter num dos seus maiores mercados de exportação um rival, que consegue oferecer produtos mais baratos e, como produz os mesmos bens, deixa de importar as produções alemãs. Esta tempestade perfeita combina com outros fatores que não devem ser menosprezados, tais como os de um modelo industrial desadequado à época em que vivemos – conforme salientou Wolfgang Münchau na entrevista que deu ao Expresso, a propósito da publicação do seu novo livro «Kaput. The End of The German Miracle». Depois, também existem razões menos exclusivas dos alemães, tais como, por exemplo, a dificuldade na aquisição de uma primeira casa; a dificuldade no pagamento das rendas devido ao preço proibitivo das habitações. Enfim, todas estas razões constituem um meio perfeito para o desenvolvimento e crescimento de partidos que se propõem aplacar estas questões de formas disruptivas, e o seu crescimento entre os jovens justifica-se porque estes constituem um setor bastante vulnerável a estes problemas sociais. Tanto a AfD como a BSW e a Die Linke beneficiam deste cenário.
Ainda na área das possíveis explicações acerca do crescimento dos partidos mais radicais, o DW destaca, como seria de esperar, as redes sociais. O Die Linke cresceu bastante – o órgão de comunicação social refere o fenómeno como um "renascimento", dado que o partido existe desde 2007 – devido à sua forte presença no TikTok, plataforma na qual a sua co-líder, Heidi Reichinnek, é bastante popular e, por isso, é bem-sucedida a atrair jovens para votarem no partido.
Se o crescimento dos partidos extremistas e radicais pode ser explicado de forma relativamente simples, não se pode dizer o mesmo acerca do mapa eleitoral da AfD. Existem várias possíveis hipóteses para a vitória da AfD no território da antiga RDA, algumas mais óbvias do que outras e não podemos ignorar aquelas que, não sendo flagrantes, podem ter algum cabimento. Por um gosto pela clareza, cingir-me-ei à hipótese que me parece mais clara para explicar o caso, que envolve o recurso a dados económicos e à história.
A unificação alemã na década de 90 do século XX foi um marco histórico, mas todo o processo subsequente foi revelador de como o mesmo país, dividido em dois, tinha passado por experiências políticas diametralmente opostas, que o tinham tornado dois países diferentes: a RFA, pertencente ao Bloco Ocidental, fora sempre uma democracia de tipo liberal, usufruindo de uma economia de mercado e gozando das liberdades inerentes ao seu sistema político; a RDA, situada no Bloco de Leste, constituía um Estado satélite da União Soviética, replicando o seu sistema político e económico. Assim, a quebra da divisão entre as "duas Alemanhas" seria sempre, inevitavelmente, um choque. Este processo constituiu mais problemas para a Alemanha de Leste porque, enquanto a parte ocidental tinha de financiar a adaptação do território a leste à economia de mercado e ao sistema ocidental, o que representou custos muitíssimo elevados, a Alemanha de Leste teve de renegar as décadas de vivência socialista e adaptar-se a um sistema que lhe era profundamente estranho. A prova de que isso não foi nada fácil é o facto de ainda hoje, em 2025, estarmos a ver essas consequências. Vejamos os dados económicos: em 2021, a média do salário mensal bruto rondava os 4000€ e os 5000€ na zona oeste, enquanto no leste andava entre os 2000€ e os 3000€; a zona ocidental possui bastantes mais sedes de empresas privadas do que o leste; os trabalhadores no leste trabalham, em média, mais 60 a 70 horas por ano do que os trabalhadores na parte ocidental; a percentagem de milionários na zona leste é de 10.94 por cada 100 mil habitantes, enquanto na zona ocidental é de 31.6 por cada 100 mil habitantes. Estes dados demonstram um determinado padrão e expressam bem a divergência que existe entre ambos os lados da Alemanha.
Não podia terminar este texto sem falar sobre o vencedor, Friedrich Merz, candidato a Chanceler pela CDU/CSU. Do que pude ler acerca da sua figura, é consensual que representa uma fação mais tradicional do partido, diferente daquela que era representada por Merkel (não por acaso, Merz abandonou o partido quando esta se tornou Chanceler). Com um notório apreço por jogadas políticas bastante arriscadas, tem uma figura calma e muito convencional. A sua carreira política começou cedo, e desde essa altura que tem sido uma figura notória na política alemã. Desde logo, importa dizer que a sua primeira tarefa não será nada fácil: terá de formar uma coligação que lhe permita governar e, tendo já reiteradamente recusado compromissos com a AfD – não deitará abaixo a famosa Firewall –, resta-lhe apenas o SPD, que também já disse que, embora disposto a formar uma coligação, não facilitará nas negociações. Contudo, não se pode ignorar que formar uma coligação com o outro partido basilar do sistema, num momento em que existe um partido de matriz antissistema com 20% dos votos, seria entregar a oposição a esta força, o que, evidentemente, prejudicaria muito ambos os partidos no futuro. A aritmética está a favor desta coligação: se o SPD e a CDU/CSU se unirem, não existe a possibilidade de uma coligação negativa torpedear o Governo; assim, a abstenção do SPD também permite aos vencedores das eleições governarem, não comprometendo tanto os sociais-democratas.
A sua missão, mais do que resolver a questão da migração, é voltar a fazer da Alemanha um país confiante. Os eleitores apontaram a política externa como um dos fatores que pesou nas suas decisões de voto. Os líderes europeus olham para Merz com expectativa, e ele já se mostrou à altura do momento: num debate pós-eleitoral, expressou a sua vontade de iniciar o processo de maior independência da Europa face aos EUA em matéria de segurança. Este desígnio de fazer da Alemanha uma potência central novamente só pode ser bem recebida por quem gosta de ver a Europa numa posição de força. O seu tom para com os EUA é algo que a BBC refere como sendo histórico e inaudito, e não deixa de ser assinalável que o Chanceler alemão, o líder de um país com as forças armadas num estado longe do desejável, opte por uma demonstração de força como a sua primeira ação política. À primeira vista, creio que a Alemanha está bastante bem encaminhada.