Eleições superlativamente...

30-03-2024

   Toda e qualquer pessoa que me conhece, sabe de antemão que não pode pura e simplesmente depositar em mim a sua confiança para apresentar sobre estas matérias um texto puramente expositivo. Nesse sentido, o texto que aqui vos apresento é uma insígnia que tão bem representa essa minha abordagem. Para quem porventura me tem acompanhado ao longo destes pouquíssimos artigos que neste jornal — e noutro — tenho publicado, saberá com certeza que não é surpreendente este preâmbulo. Alguns, poderão questionar a minha salubridade mental, indagando se não estarão, de facto, perante o espelho contemporâneo do herói Narciso; outros, saberão que se trata de uma mera idiossincrasia sem importância.

   Escrevi “salubridade mental” e lembrei-me logo do sentimento que senti, passo a redundância, permear a opinião pública na noite do dia 10 de Março e os dez dias que se seguiram. Não foi só a constante presença televisiva de um respirar aflitivo e de uma insegurança patente, espelhada na expressão daqueles em quem depositamos a confiança da comunicação, foi também a aura de festa mortiça, a celebração incompleta, a vacuidade de algumas gesticulações cuja efusividade possuía um claro sentimento de perda. Mas por que motivo seria observável esse sentimento de perda? Talvez consiga responder a esta pergunta um pouco mais abaixo.

   Independentemente de todas estas considerações perceptuais, a noite eleitoral de dia 10 de Março trouxe-nos várias novidades para o panorama político nacional. Procurarei enunciar aquelas que considero serem de maior relevância. Pela primeira vez, mais do que um dos círculos eleitorais — a divisão territorial usada para o cálculo de atribuição de mandatos — foram conquistados, pela maioria de votos, por um partido que não o Socialista ou o Social-Democrata. Este facto foi grandemente celebrado pelo líder do partido vencedor destes círculos, André Ventura, que não poupou a quem o ouvia de um grito de vitória pomposo, assinalando que aquela era a noite que “acabou [com] o bipartidarismo em Portugal”. Eu diria que este género de afirmações “fukuyanas” aspiram a estar um pouco ao nível dos prenúncios do fim dos tempos. Os fenómenos políticos tendem a ter um certo véu opaco que inibe algumas tentativas de adivinhação. Creio que é ainda bastante prematuro assumir este fim, sem antes sujeitarmos o sistema político português a mais umas rondas eleitorais. O prenúncio precoce da morte do CDS no parlamento nacional também se fez ouvir por muitas pessoas bem-intencionadas. Essa morte não se verificou. Deste modo, insisto num refrear dos ímpetos que procuram decretar fins em ciclos históricos ainda por se concretizarem. A segunda novidade será a mais óbvia, que poderão verificar na imagem que escolhi anexar a este texto (Imagem 1). Sim, o partido Chega! obteve um valor bastante expressivo, conseguindo eleger 50 deputados à Assembleia da República. Dois anos antes, conseguiu eleger 12, o que revela um crescimento representativo de 316,67%. Claro, a escolha do número percentual de crescimento em termos de mandatos dá-lhe uma dimensão ainda mais expressiva e, eventualmente para muitos, superlativamente assustadora. O aumento percentual do número de votos recebidos por este partido foi de 192,82% face às eleições anteriores. Já a terceira novidade é relativa ao partido que liderava o governo, o PS, que seguiu uma tendência de crescimento negativo, por outras palavras, perdeu representatividade. Ao nível dos mandatos, teve um decréscimo percentual na ordem dos 35%, com uma diminuição percentual do número de votos na ordem dos 21,26%.

   Finda a enumeração daquelas que considero serem as principais novidades, passemos brevemente à acusação proferida por parte de responsáveis do Chega! dirigida a membros do PSD. Os ditos responsáveis daquele, afirmam ter este partido [o PSD] obtido praticamente os mesmos votos do que em 2022. Esta afirmação é “inconfirmável”, arriscando-me aqui a apresentar um neologismo. Não é possível determinar essa diferença, dado que o PSD concorreu às eleições coligado com dois partidos, o CDS e o PPM. Posso, ainda assim, afirmar com certeza (imagem 2) que o PSD conseguiu eleger mais 6 deputados do que em 2022, o que poderá ser visto como uma derrota eleitoral face ao grande aumento representativo da direita nacionalista. Não deixa de ser, todavia, um aumento. Outro dado que é possível determinar é a soma total dos votos obtidos de forma independente por estes três partidos da coligação em 2022, dando assim para perceber se houve, ou não, algum crescimento relativo ao último sufrágio. Neste, contabilizando também os votos da coligação PSD/CDS e do PPM na Região Autónoma da Madeira, temos um total de 1 867 464 votos, o que resulta num crescimento percentual de 9,35% face às eleições de há dois anos. Há, efectivamente, uma dilatação, mas esta é imediatamente engolida pelos números que o Chega! apresenta.

   Há pouco imputei a denominação “direita nacionalista” ao Chega!. Não creio que esteja a ser injusto com esta designação. Para muitos, nomeadamente aqueles que por convicção de princípios escolhem depositar o seu voto neste partido, o nacionalismo é um espírito que merece ser trazido para a luz da ribalta do poder em Portugal. O tradicional sentimento patriótico não basta. Não basta a ideia de os portugueses considerarem Portugal o melhor país para viver, a ideia de uma devoção para com o nosso estilo de vida, a ideia de habitarmos o lar dos nossos antepassados mais próximos, a ideia da retenção das nossas raízes culturais, não, não basta, estas ideias já não são suficientes. O passo seguinte, necessário para os proponentes desta disposição ideológica, é o da conquista do poder. Através deste, institucionalizar o sentimento patriótico, abdicar das raízes europeístas de inclusão e multiculturalismo e abraçar o patriotismo superlativamente radical. Em 1945, Eric Blair asseverou que o patriotismo não podia ser confundido com o sentimento nacionalista. Orwell, o pseudónimo de Blair, afirmou: “By ‘patriotism’ I mean devotion to a particular place and a particular life, which one believes to be the best in the world but has no wish to force upon other people. Patriotism is of its nature defensive, both militarily and culturally. Nationalism, on the other hand, is inseparable from the desire for power. The abiding purpose of every nationalist is to secure more power and more prestige, not for himself but for the nation or other unit in which he has chosen to sink his own individuality.”

   Penso que já estou em condições de responder à questão que vos coloquei no segundo parágrafo deste artigo, aproveitando também para dar por encerrada estas considerações a propósito deste tema, o sentimento de perda pode ser caracterizado precisamente por aquilo que anunciei e, de certo modo, denunciei: a perda de uma sociedade imbuída de um espírito maioritariamente europeísta, transatlântico e comunitário; de uma sociedade mergulhada no sentimento de solidariedade internacional, que procura no multiculturalismo a celebração da sua própria cultura; e, por fim, uma sociedade que vê no globalismo uma forma de não regressar aos comportamentos primitivos da caverna de Platão.


António Pescão

Fonte: SGMAI, 2024
Fonte: SGMAI, 2024
Fonte: Parlamento, 2024
Fonte: Parlamento, 2024
Núcleo de Estudos Europeus da Universidade de Lisboa
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