Alameda da Universidade, Lisboa

Escapará a Hungria à deriva anti-democrática e nacionalista radical?

05-02-2024

De acordo com uma notícia publicada há duas semanas na Euronews, foi feita uma coligação interpartidária de 120 membros do Parlamento Europeu, face à posição da Hungria nas últimas questões europeias. Esta coligação tem como objetivo destituir o direito de voto detido pela Hungria e justifica-o com o "retrocesso democrático e o uso inaceitável do poder de veto por parte do primeiro-ministro, Viktor Orbán". De forma a tentar compreender como é que este retrocesso democrático se deu, e antes de avançar com as minhas considerações, parece-me essencial explorar a História da Hungria.

A História da Hungria é marcada por uma vasta mistura de influências culturais e de eventos históricos. Se remontarmos ao século XIX, com o despertar do nacionalismo húngaro, o império Austro-Húngaro foi estabelecido como uma monarquia dual, na qual a Hungria passou a ter alguma autonomia dentro do império. Antes disto, era parte do Império de Habsburgo. Antes de ser parte do Império de Habsburgo, era apenas um território ocupado pelos turcos (século XVI até XVII).

Após a Primeira Guerra Mundial, a Hungria enfrentou uma perda significativa, tanto em termos de território, como de população. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Hungria, aliada da Alemanha, foi ocupada pelas forças nazis e, em seguida, pelos soviéticos. Durante todo o período da Guerra Fria, a Hungria esteve sob o controlo soviético e só após a queda do regime comunista da Rússia, em 1989, é que embarcou numa transição para uma democracia e para uma economia de mercado. Posteriormente, em 2004, a Hungria passou a integrar a União Europeia, tentando, cada vez mais, aproximar-se às estruturas políticas e económicas do Ocidente.

Assim, é importante referir que, nas últimas décadas, a história da Hungria é um complexo mosaico de transformações políticas, sociais e económicas que, inevitavelmente, refletem a transição para uma democracia e para uma economia de mercado. E esta transição trouxe algumas dificuldades para a Hungria, nomeadamente, com a implementação de reformas económicas e políticas.

Foi neste contexto que Fidesz, partido de centro-direita, liderado por Viktor Orbán, surgiu como força política relevante. Viktor Orbán tornou-se, portanto, o primeiro-ministro húngaro em 1998. Posteriormente, em 2002, perdeu as eleições, tendo o Partido Socialista Húngaro (MSZP) acedido ao poder. Contudo, este partido enfrentou diversas dificuldades durante o mandato, nomeadamente: corrupção e escândalos, que comprometeram a confiança no partido; o fraco desempenho económico, que resultou em altos níveis de desemprego, inflação e instabilidade económica; a falta de capacidade de adaptação, tendo o partido optado por permanecer fiel a certas políticas antigas, afastando eleitores mais jovens e progressistas; e a concorrência de partidos de centro-direita e extrema-direita, que era cada vez maior, devido à insatisfação com o MSZP.

Fonte: Notícias ao Minuto
Fonte: Notícias ao Minuto

Assim, em 2010, Viktor Orbán e o partido Fidesz retomaram o poder com uma vitória eleitoral significativa. Mas, desde logo, foram feitas alterações ao sistema húngaro, desde as reformas que geraram controvérsias, às mudanças efetivas nas leis eleitorais. Críticas surgiram neste contexto, principalmente alegando a uma centralização excessiva de poder.

Em 2014, os húngaros comemoraram o aniversário da revolução de 1956, revolução esta contra o domínio soviético. No entanto, paradoxalmente, já se acreditava que o partido Fidesz estava a conduzir o país para esse mesmo passado autoritário, mas desta vez, uma autoridade vinda "de dentro". Ainda assim, o partido Fidesz continuou a ganhar nas eleições. Em 2014, ainda que fossem 2,8 milhões de húngaros a opor-se ao partido Fidesz e 2,3 milhões a favor, a verdade é que os partidos de oposição eram partidos pequenos, fracos e divididos. O único partido de oposição que acabou por se destacar foi o movimento nacionalista radical Jobbilk, que se tornou o principal "rival" do partido Fidesz.

Contudo, os problemas do partido Fidesz, partido este que afirmava ser de centro-direita, tornaram-se cada vez mais evidentes quando uma política externa pró-Rússia foi implementada, com a assinatura de um acordo de expansão nuclear. Esta política era particularmente estranha vinda do partido que exigiu que as tropas soviéticas se retirassem do território húngaro, aquando da queda do regime comunista russo. Aliás, se na altura não pareceu evidente o que se estava a passar, podemos facilmente compreendê-lo com o facto de Orbán e o seu partido se opor às sanções contra a Rússia, por parte da União Europeia e dos EUA, aquando da anexação da Crimeia.

A crise migratória de 2015 teve também um profundo impacto na política húngara: Orbán adotou uma postura rígida contra a imigração, implementando políticas bastante restritivas. Esta posição gerou muitas reações controversas, nomeadamente por parte da União Europeia, o que veio acentuar o fosso entre a Hungria e esta instituição (da qual é parte integrante). A União Europeia acredita que os requerentes de asilo devem ser tratados da mesma maneira em toda a Europa. Assim, começou a apresentar algumas preocupações com as políticas húngaras, que punham, claramente, este pressuposto em causa.

Em 2020, deu-se, novamente, um aumento das tensões entre o governo húngaro e a União Europeia. Questões como os direitos das pessoas LGBTQIA+ geraram controvérsias e confrontos sobre valores fundamentais. A União Europeia promove a igualdade de direitos, independentemente de tudo o resto, tendo declarado a proteção destes mesmos direitos em documentos jurídicos fundamentais, como o Tratado de Amesterdão (1997) e a Carta dos Direitos Fundamentais (2000). Contudo, infelizmente, na União Europeia, a situação e o respeito por estes mesmos direitos é diferente de um país para o outro.

Em abril de 2023, o Parlamento Húngaro aprovou uma lei que permite denúncias anónimas contra pessoas e famílias LGBTQIA+. Isto é, sem dúvida alguma, uma política de ódio e discriminação. Um atentado à liberdade. E não é passível de se aceitar, de forma alguma.

Perante estas políticas húngaras, e como não poderia deixar de ser, a Comissão Europeia iniciou um processo junto do Tribunal de Justiça da União Europeia. Quinze países da UE, incluindo Portugal, juntaram-se ao processo legal contra a Lei de Proteção à Criança da Hungria, uma das leis húngaras anti-LGBT.

Para além disto, um outro exemplo é o da Convenção de Istambul, assinada pela União Europeia em 2016, mas não ratificada devido à recusa de alguns Estados membros. Esta Convenção, também denominada por Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e à Violência Doméstica, é um instrumento de proteção dos direitos humanos. Seis Estados membros da União Europeia não ratificaram esta convenção. Seis Estados membros da União Europeia declaram-se, publicamente, contra a proteção e respeito dos direitos humanos. E a Hungria é um deles. Ser contra a proteção dos direitos humanos é inconcebível, especialmente vindo de Estados que se dizem democráticos. Em 2021, foi declarado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia que a convenção pode ser ratificada, mesmo sem consentimento da totalidade dos Estados.

Voltamos assim ao começo do meu artigo. A coligação interpartidária dos membros do Parlamento Europeu vem, portanto, expressar o descontentamento e a intolerância da UE para com a Hungria e as suas políticas.

Foi elaborada uma carta pelos legisladores, que foi posteriormente enviada a Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu, com o objetivo de justificar a necessidade de destituir o poder de voto da Hungria, apoiando-se no contínuo retrocesso democrático da Hungria e no papel controverso de Viktor Orbán na cimeira da UE em dezembro. Esta cimeira tinha como principal objetivo definir o futuro da política da UE em relação à Ucrânia. O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, tomou a posição de defender que fossem impedidas as conversações de adesão com a Ucrânia: "O alargamento não é uma questão teórica, é um processo baseado no mérito, juridicamente pormenorizado, que tem condições prévias. (…) Se não se cumprirem as condições prévias, não há hipótese de iniciar as negociações."; e ainda a de suspender quaisquer assistências financeiras e militares para com a Ucrânia. Como sabemos, estas questões requerem a unanimidade dos Estados membros da UE e, portanto, assim sendo, depois de Orbán ter cumprido a ameaça de vetar um fundo de 50 mil milhões de euros, destinados a prestar assistência à Ucrânia, as tensões entre Estados membros da União Europeia e a Hungria intensificaram-se.

A verdade é que a Hungria está sob um processo jurídico desde 2018, ao abrigo do primeiro capítulo do Artigo 7º do Tratado da União Europeia, o que significa que a Hungria se apresenta como um "risco claro de uma violação grave dos princípios fundamentais". Ainda que a votação no Conselho Europeu seja feita de acordo com uma maioria qualificada, devido à "natureza radical da suspensão", a Hungria permaneceu nesta primeira fase do artigo até aos dias de hoje. Contudo, este grupo de eurodeputados quer pôr em prática a segunda fase do artigo, em que poderá ser determinada a "existência de uma violação grave e persistente dos valores fundamentais", por parte da Hungria. Ainda assim, para que isto se torne possível é necessária uma proposta por parte de um terço dos Estados membros da União Europeia, seguida da aprovação do Parlamento Europeu. Apenas na terceira fase do artigo será possível a suspensão efetiva de certos direitos à Hungria, tal como o direito de voto.

Com esta carta, com o crescente descontentamento dos Estados membros para com as políticas húngaras e com o Parlamento Europeu a trabalhar numa resolução (não vinculativa) sobre a Hungria, o desencadeamento das fases seguintes do artigo 7º poderá ser possível. Contudo, não podemos esquecer a onda de extrema-direita que se está a propagar na Europa. Assim sendo, não é provável que líderes como Giorgia Meloni (primeira-ministra italiana) ou Robert Fico (primeiro-ministro da Eslováquia) apoiem a suspensão do direito de voto à Hungria.

Irá a União Europeia continuar a declarar e a defender os seus valores enquanto instituição? Porque não me parece que a presença da Hungria nas questões europeias seja compatível com a defesa dos valores que a União Europeia diz serem os seus. Valores estes que não passam de direitos fundamentais e que não deviam, de forma ou em circunstância alguma, ser postos em causa por ninguém.


Madalena Gonçalves

Webgrafia: https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:9e8d52e1-2c70-11e6-b497-01aa75ed71a1.0019.01/DOC_2&format=PDF https://pt.euronews.com/my-europe/2024/01/12/120-eurodeputados-exigem-que-a-hungria-perca-direito-de-voto-na-ue https://www.bbc.com/news/world-europe-29740030 https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/eu-migration-policy/#role https://youth.europa.eu/get-involved/your-rights-and-inclusion/lgbti-rights-europe_pt https://pt.euronews.com/my-europe/2023/04/07/15-paises-da-ue-juntam-se-em-processo-de-infracao-contra-lei-anti-lgbt-hungara https://pt.euronews.com/my-europe/2023/12/14/orban-ameaca-destruir-a-politica-ucraniana-durante-a-reuniao-dos-lideres-europeus-em-bruxe https://pt.euronews.com/my-europe/2023/05/10/violencia-eurodeputados-aprovam-ratificacao-da-convencao-de-istambul
Núcleo de Estudos Europeus da Universidade de Lisboa
Desenvolvido por Webnode Cookies
Crie o seu site grátis! Este site foi criado com a Webnode. Crie o seu gratuitamente agora! Comece agora