IDENTIDADE EUROPEIA — Um Breve Comentário

Autor: António Pescão
Esta reflexão, escrita numa estrutura que se assemelha a uma breve recensão, pretende debruçar-se sobre o ensaio A Identidade Cultural Europeia[1], de VASCO GRAÇA MOURA. O propósito essencial não é o de procurar fazer uma descrição exaustiva da visão apresentada por GRAÇA MOURA, mas sim expressar, através das linhas gerais do pensamento do autor, a dificuldade que se impõe aquando da tentativa de explicar a natureza da identidade cultural europeia. Desde logo, não existe consenso entre os estudiosos sobre se existe, ou não, uma unidade identitária homogénea e universal[2], de facto. Porém, GRAÇA MOURA não abdica do papel que lhe foi atribuído, o de um observador crítico da história do continente europeu. E, no nosso entender, é de suma importância a compreensão da evolução histórica das diferentes células sociais que habitaram o nosso continente.
"A identidade cultural europeia não é nem pode ser um facto imobilizado no tempo."[3]
A citação supratranscrita consegue, de forma bastante sintética, encapsular a problemática da análise da cultura europeia. Esta reflexão não se pode limitar a um conjunto de observações sobre um determinado período da história, seja ele qual for. "É antes um processo em marcha"[4], que visa perscrutar toda a dimensão temporal e a sua inerente diferenciação qualitativa. O reconhecimento de uma identidade unitária deve começar por assentir esta evidência fundamental: que a diversidade das expressões identitárias do presente reflecte necessariamente uma equivalente diversidade das mesmas entre o passado e o presente. A título exemplificativo, olhemos para esta breve exposição de GRAÇA MOURA:
"(...) na identidade cultural europeia tanto surgiram um feroz espírito de Cruzada como, passados mais de mil anos, o seu oposto, admitindo a coexistência pacífica de crenças religiosas e o respeito recíproco entre elas."[5]
Aqui, o autor fornece-nos um ponto de contacto claro com a história do continente europeu e um dos seus pilares culturais fundamentais: o judaico-cristão. Exemplos mais recentes podem ser identificados. Entendia-se que o Nationalsozialismus sustentava uma visão estratégica de união dos Estados europeus. Em termos simplistas, a sua liderança delineava um projecto — um projecto europeu — que buscava uma unidade europeia fundada sobre uma matriz de valores germânica, com a interpretação que ADOLF HITLER e seus acólitos subscreviam.[6] Porém, não é essa a actual matriz de valores que sustenta uma visão unida do Velho Continente.[7] Se nos é possível reconhecer que foi a voz de um Senador romano que atravessou milénios a contribuir largamente para a definição daqueles que seriam os valores germânicos[8], isso já não é possível quanto ao traçar de uma ligação directa e estreita de uma eventual inspiração única quanto aos valores latinos, anglo-saxónicos e franceses (estes últimos que caracterizaram com esplendidez o período da Revolução Francesa). Esse progresso amplamente visível na edificação daquele que é o vigente projecto europeu surge de um caldo de elementos comuns que foram permeando a memória colectiva de cada geração. Elementos esses que perscrutaram as dimensões mitológica e onírica, "pelo imaginário, tanto erudito como popular".[9] E se nos é possível especificar quais destas criações mais peso colocou sobre os ombros das diferentes gerações, essas concepções foram reconhecidas por GRAÇA MOURA como sendo as que um escritor africano — a identidade não foi revelada por aquele — em tempos terá referido: "eram elas Prometeu, Ulisses e Fausto".[10] VASCO GRAÇA MOURA vai mais longe, asseverando que, pese embora não esgotem o cânone, "não parece que existam figuras a eles semelhantes noutros universos civilizacionais do nosso planeta".[11]
GRAÇA MOURA, assim como outros tantos autores que pensam a história da cultura europeia, ao analisarem o processo político do período de construção europeia — no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial e no desenvolvimento neofuncionalista das instituições europeias como a CECA, CEE e UE —, afirmam que a Europa foi concebida em nome de um federalismo europeu[12]. Ainda assim, é inevitável o reconhecimento de que a identificação que os cidadãos europeus sentem relativamente à sua identidade — histórica, cultural e política — se limita, em grande medida, a um processo complexo de intelectualização das elites escolarizadas, ao invés de um sentimento de conexão patriótico; ou seja, emocional e familiar. Em 2009, MÁRIO SOARES, ao criticar[13] a actuação descoordenada das lideranças dos Estados-membros da União Europeia no contexto da grande crise de 2008, afirmou, com um natural sentimento de amargura, que a União "representa um projecto político de paz, de solidariedade e de unidade entre os países-membros, pelo menos no plano económico, uma vez que nunca foi possível, infelizmente, constituir-se numa União política, como sempre foi a ideia dos Pais Fundadores".[14] GRAÇA MOURA vai ao encontro do histórico líder socialista, quando este critica os responsáveis políticos europeus por ignorarem algo tão fundamental como a compreensão da necessidade de estimular uma sensação de pertença à comunidade europeia: "(...) nunca se quis fomentar a cidadania europeia, fazer participar todos os eleitores europeus nas decisões da União. Daí, em grande parte, o desinteresse das populações europeias pelo que se passa no Parlamento Europeu e na Comissão, (...)".[15]
O ensaísta e poeta, apesar de considerar as matrizes greco-latinas e judaico-cristã como sendo os pilares fundamentais da história cultural europeia, de modo algum ignora a influência cimeira de outras tendências históricas e culturais, desconsiderando a ideia de que as duas matrizes supra-mencionadas teriam, de alguma maneira, sobrevivido na sua pureza original, imaculadas de uma qualquer miscigenação identitária. Partindo da ideia de que as matrizes culturais não estão seladas hermeticamente ao longo da história, GRAÇA MOURA destaca a influência de uma matriz muçulmana: "(...) as matrizes greco-romanas e judaico-cristãs da Europa tenderão a combinar-se diferentemente com outras, entre elas a muçulmana, que teve sempre um peso importante na cultura europeia."[16]
Por fim, não nos é possível concluir este breve ensaio sem realçar aquele que é um outro aspecto fundamental da análise de VASCO GRAÇA MOURA: "o antieuropeísmo como um elemento constitutivo do pensamento europeu."[17] Esta frase do historiador húngaro ANDRÉ RESZLER resume bem a ideia que GRAÇA MOURA pretende transmitir. Enquanto elemento caracterizador fundamental da identidade europeia, a capacidade de se subtrair a um auto-retrato hagiográfico e à abnegação da perfeição, colocando-se num estado de perpétuo descontentamento e insatisfação, torna o continente europeu particularmente exposto a um paradigma de permanente autoflagelação e, em simultâneo, de reformação eterna.
[1] Graça Moura, V. (2013). A Identidade Cultural Europeia (F. Manuel dos Santos, Ed.).
[2] Papadogiannis, N. (2019, May 21). Is there such thing as a "European identity"? The Conversation.
[3] (Graça Moura, 2013, p. 10).
[4] (Graça Moura, 2013, p. 10).
[5] (Graça Moura, 2013, p. 32).
[6] Nazism and the European idea – Historical events in the European integration process (1945-2014) – CVCE Website.
[7] European Union. (2024). Aims and values. European Union.
[8] Ancient text has long and dangerous reach. (2008, February 21). Harvard Gazette.
[9] (Graça Moura, 2013, p. 88).
[10] (Graça Moura, 2013, p. 44).
[11] (Graça Moura, 2013, p. 45).
[12] Kaiser, W. (2024). BRIEFING European Parliament History Series.
[13] Soares, M. (2009). Em luta por um mundo melhor (T. e Debates, Ed.).
[14] (Soares, 2009, 56).
[15] (Soares, 2009, 67).
[16] (Soares, 2009, 51).
[17] Citado em (Graça Moura, 2013).
BIBLIOGRAFIA
Ancient text has long and dangerous reach. (2008, February 21). Harvard Gazette.
European Union. (2024). Aims and values. European Union.
Graça Moura, V. (2013). A Identidade Cultural Europeia (F. Manuel dos Santos, Ed.).
Kaiser, W. (2024). BRIEFING European Parliament History Series.
Nazism and the European idea – Historical events in the European integration process (1945-2014) – CVCE Website.
Papadogiannis, N. (2019, May 21). Is there such thing as a "European identity"? The Conversation.
Soares, M. (2009). Em luta por um mundo melhor (T. e Debates, Ed.).
[Este ensaio é uma adaptação de um trabalho para a Unidade Curricular de Integração Europeia: Teorias e Instituições]