Alameda da Universidade, Lisboa

Lampedusa: uma parte de um problema maior

16-10-2023

Há 8 anos, em 2015, a imagem do corpo sem vida de um menino sírio estendido numa praia na Turquia chocou o público. A criança de 3 anos e a sua família faziam a perigosa travessia do Mediterrâneo em direção à costa europeia, quando a sua embarcação naufragou. Alan Kurdi obrigou o mundo a encarar a tragédia a decorrer no litoral europeu, tornando-se assim um símbolo da crise migratória. A reação emotiva à sua imagem ergueu esperanças de uma mudança da política e atitude europeia, face aos milhares de pessoas que arriscam a sua vida todos os dias ao tentar chegar à Europa, fugindo da guerra e da pobreza. No entanto, a realidade atual não demonstra grande progresso e a situação no Mediterrâneo permanece funesta.

No final do mês passado, Lampedusa, uma pequena ilha italiana próxima do Norte de África, recebeu cerca de 10 mil imigrantes num espaço de dias. Há 10 anos, por volta da mesma altura, uma embarcação de migrantes naufragou próxima da costa da ilha, mais de 300 homens, mulheres e crianças morreram afogados. A localização de Lampedusa, mais perto do continente africano do que o europeu, faz com que a ilha seja um verdadeiro hotspot para a chegada de migrantes vindos do Norte de África, África Subsariana e Médio Oriente que procuram entrar na Europa. Lampedusa é uma ilha com apenas 20 quilómetros quadrados e o número de imigrantes que chegaram à ilha em setembro supera o total da sua população. O centro de acolhimento de migrantes da ilha encontra-se completamente sobrelotado e os barcos que transportam os migrantes que chegam à ilha para Itália continental não são suficientes para aliviar a pressão. Nem durante a crise migratória de 2014 e 2015 o cenário em Lampedusa viu-se tão preocupante em tão pouco tempo. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, a pedido da primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, visita Lampedusa a fim de analisar a gravidade da situação e responder ao que a própria denomina como "imigração ilegal". As duas são recebidas com protestos dos residentes da ilha que, apesar de em grande parte receberem os migrantes com generosidade, também se sentem esquecidos pelo seu governo e ainda mais pela União Europeia. Ursula von der Leyen apela à necessidade de uma "resposta europeia" para este "problema europeu" e anuncia um plano de dez pontos que deverá atualizar a política migratória europeia e apaziguar o problema em Lampedusa. A solução assenta em primeiro lugar no mecanismo de solidariedade, que responsabiliza todos os estados-membros para acolher os migrantes que chegam a Lampedusa. O mecanismo seria um desenvolvimento em relação à Regulação de Dublin, no entanto, é voluntário, e a solidariedade entre estados-membros perante o acolhimento de migrantes africanos apresenta-se suspeitosamente escassa. Polónia, Hungria e França já declararam que não pretendem acolher os migrantes que chegaram à costa italiana e criticam o plano de Bruxelas. Ademais, o plano prevê uma parceria estratégica entre Bruxelas e Tunísia para combater os contrabandistas que viabilizam a travessa do Mediterrâneo. A polémica aprofunda-se, é de relembrar que o presidente da Tunísia, Kais Saied, foi imposto por golpe de estado e abertamente declara que a chegada de migrantes africanos negros ao seu país é uma ameaça à "composição demográfica" da Tunísia, os relatos de perseguição e abuso de migrantes oriundos da África Subsariana são vários. A questão levanta-se de como poderá a União Europeia, instituição supostamente defensora dos valores democráticos e dos direitos humanos, enviar fundos para um regime desta natureza. Adicionalmente, os dez pontos preveem, sem surpresas, o aumento da vigilância do Mediterrâneo através de agências como a Frontex, o novo plano para a migração demonstra-se assim como uma reciclagem de medidas e de uma lógica que há muito tempo está em prática na UE. Se a esperança por mudança já era pouca antes, mais diminuta é agora. Por muito mais que a violência e as tragédias que ocorrem no litoral europeu comovam os burocratas de Bruxelas, claramente são rapidamente esquecidas no momento de formular medidas.

Fonte: Reuters
Fonte: Reuters

O Sistema Europeu Comum de Asilo (CEAS) há muito que assenta na ideia da "Fortress Europe" e numa política migratória progressivamente mais restritiva. Existem várias lógicas de governança em jogo que dificultam a definição de uma política migratória europeia eficiente e benéfica para todos, assegurar conjuntamente a não-discriminação, integração económica e segurança não é tarefa fácil, mas uma tendência é claramente identificável. Apesar das várias diretivas que tentam definir condições mínimas para a receção de migrantes nas fronteiras europeias, o foco europeu era e continua a ser a deportação, o reforço de fronteiras e a externalização da política de controlo de migração. A crise de refugiados sírios, assim como a crise em Lampedusa, ilustram nitidamente as falhas do CEAS. A incapacidade de distribuição proporcional de refugiados pelos estados-membros e a consequente pressão insustentável sobre os países costeiros do Mediterrâneo, as díspares e precárias condições dos centros de processamento de migrantes, os distintos parâmetros empregues pelos estados-membros para aceitação de pedidos de asilo, a permanência de migrantes com estatuto ilegal completamente desprotegidos devido aos custos elevados das deportações, a lista continua. A política europeia tem por muito tempo falhado estas pessoas que procuram um porto seguro, porém, os acontecimentos recentes na Ucrânia e a subsequente ação europeia vieram a demonstrar que a política migratória da UE pode ser eficiente e humanitarista, pelo menos para alguns.

A invasão russa da Ucrânia levou milhões de pessoas a procurar refúgio nos estados-membros da União Europeia. Sem qualquer hesitação, os cidadãos europeus abriram as portas das suas casas para receber famílias afetadas pela guerra. A UE rapidamente concedeu proteção temporária àqueles que escapavam a destruição na Ucrânia. Esta solidariedade e empatia europeia para com os refugiados ucranianos é verdadeiramente inspiradora, contudo, sem precedentes, e não parece extensível a refugiados provenientes de outras partes do globo. Foi concedida proteção ao dobro do número de refugiados sírios que pediram asilo em 2015. Não-nacionais ucranianos a evadir a invasão russa, particularmente de nacionalidade africana, enfrentaram maior dificuldade a obterem asilo nos países fronteiriços da Ucrânia. Porquê? Os migrantes não-europeus também fogem da guerra, da pobreza extrema, da perseguição política, das alterações climáticas, por isso volta-se a sublinhar, porquê? A própria linguagem utilizada pelos líderes europeus demonstra uma chocante diferença entre o tratamento dos refugiados. O antigo primeiro-ministro búlgaro, Kiril Petkov, afirmou em relação aos refugiados ucranianos que estes "não são os refugiados a que estamos habituados (…) estas pessoas são europeias (…) são pessoas educadas". Já Viktor Orbán, declarou que é fácil perceber a diferença entre os refugiados ucranianos e as "massas a chegar das regiões muçulmanas". Estas afirmações medonhas evidenciam uma conjuntura política agora transversal a quase todos os países europeus. Estará a UE a sucumbir aos interesses de uma, progressivamente mais forte, direita xenófoba e populista? Onde ficam os objetivos de combater a discriminação, promover a solidariedade entre os povos e proteger os direitos humanos, tão claramente definidos no Tratado de Lisboa no meio de isto tudo? Este contraste entre a receção de refugiados ucranianos e refugiados de África e do Médio Oriente torna evidente o quão discriminatório e politizado é o processo de fornecer asilo. Há décadas que a experiência de refugiados não-europeus na UE revolve em torno de sobrelotados centros de detenção, violência policial e intermináveis procedimentos de avaliação de pedidos de asilo. Deseja-se que esta atitude positiva da UE para com os refugiados ucranianos seja um exemplo a seguir no futuro, pois esta deveria ser a regra e não a exceção.

É imperativo que a Europa repense a sua política migratória. Os eventos em Lampedusa, na Ucrânia, no Sudão do Sul, no Irão, na Palestina, e inúmeros outros locais, sublinham a necessidade de um sistema internacional de proteção de migrantes justo, humano e eficaz. Sem apoio e novas políticas o número de mortos no Mar Mediterrâneo vai continuar a aumentar. Sem solidariedade entre os estados-membros da UE, países como Itália não vão suportar as massas migratórias. Sem educação e a condenação explícita da discriminação, do racismo, da islamofobia, os cidadãos europeus continuarão a cair em discursos xenófobos e anti-imigração.


Mariana Santos

Webgrafia: https://apnews.com/article/russia-ukraine-war-refugees-diversity-230b0cc790820b9bf8883f918fc8e313 https://reliefweb.int/report/ukraine/ukraine-crisis-double-standards-has-europe-s-response-refugees-changed https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ip_23_4503 https://expresso.pt/podcasts/expresso-da-manha/2023-09-19-Do-inferno-do-Mediterraneo-ao-purgatorio-de-Lampedusa-sem-nunca-encontrar-o-paraiso-europeu-a232f0e8 https://www.dn.pt/internacional/plano-de-acao-anunciado-em-lampedusa-mas-solucao-esta-tambem-na-tunisia--17040701.html https://pt.euronews.com/2023/09/17/estamos-a-fazer-tudo-o-que-podemos-meloni-e-von-der-leyen-ja-estao-em-lampedusa
Núcleo de Estudos Europeus da Universidade de Lisboa
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