Alameda da Universidade, Lisboa

O direito a um teto

13-03-2023

"Só há liberdade a sério,

quando houver,

a paz, o pão, a habitação,

a saúde, a educação!" – Liberdade

Assim cantava Sérgio Godinho em 1974, impulsionado pelo entusiasmo da Revolução dos Cravos. Numa onda de otimismo, Portugal libertava-se das amarras autoritárias, caminhando para um projeto europeu, onde a democracia, a liberdade e a prosperidade dos povos eram tidos como valores inquestionáveis. "A paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação!" eram considerados direitos fundamentais, a base de qualquer estado livre. Mas isto eram os anos 70, período em que ser social-democrata, liberal ou democrata-cristão significava algo e época em que as necessidades pessoais e sociais eram postas em primeiro plano.

Aparecido na década de 1980, por mão da "Dama de Ferro" Margareth Thatcher, e consolidado nos 20 anos seguintes, o neoliberalismo alterou profundamente as dinâmicas económicas e sociais da Europa. A Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (S&D), que representa no Parlamento Europeu os partidos de centro-esquerda, foi praticamente tomada de assalto por uma ideologia que viria a ficar conhecida como a Terceira Via (a implantação do neoliberalismo dentro da social-democracia).

Não pretendo aqui escrever um artigo sobre como o neoliberalismo destruiu o estado social europeu, no entanto, há que compreender que esta ideologia foi responsável pela subversão do social ao económico e os resultados estão à vista.

Temos em mãos, uma crise habitacional que afeta praticamente toda a Europa. A inflação elevada acentuou uma crise que já se alastrava desde o inicio da pandemia COVID-19 e que colocou milhões de famílias em situação de desespero e miséria. O aumento generalizado dos preços, acentuado com o conflito russo-ucraniano, tornou o custo de vida praticamente insuportável para uma grande parte da população europeia, que se viu confrontada entre poder aquecer as suas casas ou alimentar as suas famílias.

Com o preço das rendas a ocuparem mais de metade dos rendimentos líquidos, com as taxas de juro elevadas que dificultam a obtenção de novos empréstimos ou o pagamento dos mesmos, cada vez menos pessoas conseguem suportar os custos de habitação. No caso dos jovens, a dificuldade em conseguir casa própria é cada vez maior, impossibilitando a sua total emancipação. Em Portugal, a idade média de um jovem que saía de casa dos pais em 2021 (últimos dados disponíveis) era de 33,6 [1]. Por comparação, a Suécia possuía a idade média mais baixa, com 19 e a Dinamarca seguia-se com 21 [2].

A péssima prestação de Portugal pode, em parte, relacionar-se com os míseros 2% de parque habitacional público nacional. Por comparação, a habitação pública na Dinamarca e Suécia rondam os 20% [3] [4]. A ideia aqui é simples: quanto mais habitação pública, maior a acessibilidade na hora de adquirir uma casa.

Pela primeira vez desde 2011, o BCE aumentou as taxas de juro de referência, o que auxiliou uma diminuição dos preços das habitações em seis países (Alemanha, Dinamarca, Finlândia, Itália, Roménia e Suécia), no 3º trimestre de 2022. No entanto, a tendência geral da União Europeia aponta para o aumento dos preços [5].

A preocupação das famílias é muita. Desde 2010, até ao terceiro trimestre de 2022, o preço das habitações subiu uns impressionantes 89%, enquanto as rendas subiram 19% [6]. O que se entende destes dados é que este problema não é mero fruto de circunstâncias extraordinárias (Pandemia COVID-19, Guerra na Ucrânia), mas sim um produto dum sistema económico que se baseia na exploração desmensurada da propriedade e do trabalho. De acordo com a CRP, a habitação é um direito, mas cada vez mais se apresenta como um privilégio.

As grandes empresas financeiras e imobiliárias, com a conivência dos governos europeus, são a principal razão pela qual as famílias sentem cada vez mais dificuldade a pagar as suas rendas e os créditos à habitação. Enquanto as grandes instituições bancárias apresentam lucros extraordinários que batem recordes, a população portuguesa (e, em diversas expressões, a europeia) tem no pescoço uma corda cada vez mais apertada.

Se é verdade que os diversos governos europeus têm adotado medidas que visam combater este problema, a realidade é que todos pecam pela sua timidez, num esforço que procura agradar à população, mas também às instituições que perpetuam esse mesmo problema.

Todos se lembram da grande crise de 2008, que teve também inicio no setor imobiliário e deixou na miséria, e em grandes dificuldades, milhões de pessoas. Durante esse período, quem beneficiou foram as grandes empresas financeiras, que apostaram na compra massiva de imóveis a preços ridiculamente baixos, que acabaram por gerar lucros obscenos. Os males do capitalismo são bem conhecidos: alienação das classes mais baixas, monopolização e cartelização de preços e serviços, especulação e crescimento de desigualdades económicas e sociais. Os governos, que nada mais aparentam ser do que o veiculo condutor das políticas que perpetuam esses males, não ouvem os súplicos daqueles que juraram defender, preferindo a hegemonia do capital.

A resposta a esta crise não é simples, mas é possível. Uma das prioridades, sobretudo em Portugal, deveria ser o aumento do parque habitacional público, fosse através da construção ou requalificação do património existente. A UE e o BCE têm também o dever de intervir no mercado e dar os incentivos necessários para os cidadãos europeus terem um alivio significativo no que diz respeito aos créditos à habitação. As políticas de austeridade adotadas pelas instituições financeiras europeias só dificultam um momento que, por si, já é difícil.

Está na altura de a Europa deixar para trás as políticas falhadas do neoliberalismo, que só beneficiam a elite. Na segunda metade do século XX, a União Europeia foi criada tendo em vista a paz e a prosperidade de todos no Velho Continente. Mas algures pelo caminho, o conceito de "todos" parece ter sido alterado para "alguns". Num espaço que se pauta pelos valores da dignidade, justiça, oportunidade, é necessário garantir um dos mais fundamentais direitos humanos: o direito a ter um teto.


[1] Eurostat. 2022.

[2] Eurostat. 2022.

[3] Público. 2020.

[4] Housing Nordic, NBO. 2020.

[5] Público, 2023.

[6] Eurostat. 2023.


Rodrigo Dias, Mestrado em História, FLUL


Webgrafia

Eurostat. 2022. "Idade dos jovens que abandonam a sua família parental". Agosto de 2022. https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php?title=Age_of_young_people_leaving_their_parental_household&action=statexp-seat&lang=pt#Desenvolvimento_ao_longo_dos_anos 

Eurostat. 2023. House price index. Disponível em: https://ec.europa.eu/eurostat/databrowser/view/PRC_HPI_Q__custom_1362649/bookmark/table?lang=en&bookmarkId=f477116d-28fc-4d0e-95cc-49f38cf64e20 

Housing Nordic, NBO. Affordable Housing Models in the Nordic Countries 2020. (NBO 2020). Disponível em: https://static1.squarespace.com/static/5a99206bee17593d9ef5cceb/t/5f609207aed573278ae41bc4/1600164570274/NBO+%E2%80%93+Housing+Nordic_Housing+models+in+the+Nordic+Region.pdf 

PÚBLICO. 2020. A urgência da habitação pública. (Público, 3 de Dezembro de 2020). Disponível em: https://www.publico.pt/2020/12/03/opiniao/noticia/urgencia-habitacao-publica-1941618

PÚBLICO. 2023. Preços das casas já caem na Europa , mas Portugal vai continuar a ser excepção. (Público, 29 de Janeiro de 2023). Disponível em: https://www.publico.pt/2023/01/29/economia/noticia/precos-casas-ja-caem-europa-portugal-vai-continuar-excepcao-2036661 

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