
O fim de presença Ocidental na África Ocidental
Numa altura em que as relações diplomáticas entre França e as suas ex-colónias na África Ocidental se encontram degradadas, o sucedido no Níger vem piorar a situação, após o golpe de Estado militar a que foi sujeito, a 26 de julho de 2023, que se apresenta com uma retórica anti-francesa e antiocidental.
Recentemente, a Junta Militar do Níger acusou França de violar o seu espaço aéreo como parte de um plano para destabilizar o país, algo negado pela potência Ocidental, sendo que não foram apresentadas quaisquer provas para esta acusação. Contudo, esta situação assumiu contornos inesperados, após o novo governo do Níger ter exigido a retirada das tropas da NATO do seu território, algo a que os países da Aliança Atlântica não acederam, sob justificação de não reconhecerem a legitimidade da Junta Militar do Níger enquanto governo. Como resposta, o governo nigeriano ameaçou prender todo e qualquer cidadão europeu residente no seu território até que esta exigência fosse satisfeita, o que levou a um azedar das relações diplomáticas com países com os quais partilha fronteira.
De modo a percebermos esta conflito, importa ter algum conhecimento histórico dos laços que unem França e a África Ocidental, história essa que apresentarei de seguida, da forma mais sucinta possível.
Como é do conhecimento geral, França foi uma potência colonial, com diversas colónias na África Ocidental, onde ainda hoje exerce uma grande influência, não apenas cultural, mas política. Até à grande vaga de descolonizações no início da década de sessenta, França emitiu uma moeda única para as suas colónias na região do Sahel, moeda essa denominada Franco CFA, que estava indexada ao Franco Francês. Após a desanexação destas regiões, foi criada a CEDEAO, organização económica internacional que integra a maioria dos territórios outrora controlados pelo governo francês, e cuja orientação política se rege pelos interesses franceses e ocidentais. Contudo, mesmo após as descolonizações, esta moeda continuou a ser utilizada nestes países, estando, agora, indexada ao euro. E onde reside o grande problema? Precisamente no facto de a alavanca que controla o Franco CFA ainda se encontrar em Paris, o que permite a França manter um domínio económico sobre estes países, algo a que chamamos, nos dias de hoje, de neocolonialismo. O facto de este controlo económico ainda existir permite a França ter fácil acesso a uma enorme percentagem dos recursos naturais produzidos nestes países, o que lhe possibilita alcançar uma estabilidade invejável. Um bom exemplo são as toneladas de urânio exportados do Níger para França todos os anos, urânio esse que não é mais que o motor da produção de energia nuclear, que representa 70% da energia produzida em França, e que a deixa numa situação de quase dependência energética face ao Níger. Este facto é bem conhecido pela população dos países da África Ocidental e tem permitido que o sentimento anti França prolifere de tal modo que já quatro países da CEDEAO – Mali, Guiné, Burkina Faso e agora Níger – foram vítimas de golpes de Estado, instaurando uma reviravolta política ao alinharem-se com os interesses russos, através do grupo Wagner (grupo paramilitar com ligações ao governo russo que se tem vindo a instalar nestas regiões, oferecendo treino militar em troca de direitos de exploração).
Como referido acima, a CEDEAO é, assim como a União Europeia, não apenas uma união económica e monetária, mas uma união [de orientação] política, orientação essa que se rege pelos interesses ocidentais. Neste contexto, logicamente é um problema para a organização que quatro dos seus membros tenham sido vítimas de golpes militares que derrubaram os governos pró-ocidentais, democraticamente eleitos. Assim, como consequência, para além da suspensão imediata da organização e de sansões económicas, o Níger foi vítima de um ultimato por parte das potências que compõem a CEDEAO, nomeadamente da Nigéria, coluna vertebral da organização, que exigiu a reposição imediata do presidente deposto, Mohamed Bazoum. Porém, e ao contrário do que seria de esperar, esta ameaça não se limitou ao apelo diplomático. Ao invés, tomou proporções inesperadas, no contexto em que as potências das CEDEAO ameaçaram com uma intervenção militar em massa, de modo a restaurar a ordem constitucional. Até aqui, poderíamos pensar que seria só mais uma intervenção num conflito local, de maneira a instaurar a ordem internacional. No entanto, essa ideia desvanece quando, numa jogada diplomática inesperada, não apenas as demais potências suspensas da CEDEAO se alinharam de modo a defender a Junta Militar do Níger, como países terceiros, como a Argélia ou a Eritreia, se começaram a posicionar e a alinharem-se face aos lados que defendem.
Importa agora, portanto, perceber que o conflito que se está a desenvolver na África Ocidental não é uma guerra entre as potências africanas em si, mas uma repetição da Guerra Fria, na qual, num lado temos os membros da CEDEAO, que se alinham com os interesses ocidentais, e no outro, países cujos governos se posicionam duma forma mais conveniente à Rússia.
Isto surge no âmbito de centenas de anos de opressão e exploração por parte do Ocidente, exploração que persiste nos dias de hoje, e exploração essa que faz com que os africanos sintam que a sua única saída desta "escravização" moderna é confiarem o seu destino nas mãos da Rússia.
Estando, então, feita a breve apresentação do conflito, tomo a liberdade de, num argumento de opinião pessoal, introduzir uma última ideia que considero relevante na apreciação dos eventos a que assistimos nesta região tão inóspita do globo.
É certo que a CEDEAO é uma importante aliada do Ocidente, e que as suas principais potências, para além de utilizarem o Franco CFA, também são abastecedores de relevo, no que toca a recursos naturais a França. Não obstante, considero de especial interesse o argumento francês da "ilegitimidade do governo do Níger". É certo que este governo não foi eleito democraticamente, muito pelo contrário, conquistou o poder por via da força. No entanto, um aspeto ao qual não foi dada a devida atenção foi ao impacto social que este golpe teve, impacto esse que me faz questionar – até que ponto este governo "ilegítimo" não terá legitimidade para levar a cabo os atos que nos conduziram a esta situação? Pois, apesar de não ter sido eleito, a verdade é que a população não está a lutar contra as suas ordens, pelo contrário, está a apoiá-las. Isto deixa-nos numa situação sensível, pois na realidade, a administração anterior não passava de um governo fantoche dos interesses ocidentais, o que me leva a questionar até que ponto é que as "eleições livres" neste país, até agora, terão sido fidedignas, pois caso não o tenham sido, isso explicaria o comportamento geral da população nigeriana que apoia a nova administração.
Por fim, com opiniões à parte, resta-me apenas destacar que o sucedido já levou ao encerramento das fronteiras e do espaço aéreo, cortando o fornecimento de alimentos, de medicamentos e de ajuda humanitária num dos países mais pobres do mundo, não sendo isto mais do que a primeira das muitas consequências que poderão advir de um conflito "aqui à porta", que poderá rebentar a qualquer momento.
Miguel Fontes