Alameda da Universidade, Lisboa

“SINEWS OF PEACE” — Análise do discurso proferido por Sir Winston Churchill

09-05-2025


Autor: Guilherme Matos


Introdução

No dia 05 de março de 1946, em Fulton (Missouri) – Estado natal do Presidente americano, Harry Truman –, Sir Winston Churchill proferiu o discurso intitulado "Sinews of Peace", diante da audiência presente no Westminster College e diante do resto do mundo que o escutava via rádio. Na sequência de uma condecoração pela instituição.

Este discurso assemelha-se muito às demais exposições escritas e proferidas pelo orador, na medida em que foi meticulosamente preparado. É importante sublinhar que, apesar de posteriormente ter mostrado o contrário, o Presidente americano Harry Truman aprovou o discurso, tal como o então Primeiro-Ministro britânico Clement Atlee.

O conteúdo do discurso pode ser descrito, muito sinteticamente, como uma análise da realidade internacional baseada na visão que Churchill tinha do mundo, avisos que advinham de anos de experiência – incluindo ataques a quem não lhe dera atenção pouco mais de 10 anos antes – e de comentários (ou opiniões) acerca de questões muito perenes da atualidade. É importante sublinhar que Churchill apresenta-se apenas "como o que vocês veem" – isto é, sem qualquer missão política, intenção sibilina nem ambição política.

A posteriori, é possível dividir o discurso em duas partes, sendo a segunda a mais afamada – a parte da "Cortina de Ferro". O teor de ambas as partes é muito semelhante, mas a questão primordial abordada difere, sendo que na primeira o enfoque está, sobretudo, no elogio aos Estados Unidos da América e na importância da aliança transatlântica; na segunda, o enfoque vira-se para leste.

Proponho-me com este trabalho a analisar o discurso e a contextualizar as questões que assim o exijam.

O texto a que recorri foi retirado do site "History on the net", sendo esta a versão inglesa.


Desenvolvimento

O discurso começa com os típicos cumprimentos, que são dirigidos ao Presidente de Westminster College, Franc McCluer; a todos os presentes; e ao Presidente dos Estados Unidos da América, Harry Truman. De seguida, vêm os agradecimentos, sobretudo pela graduação recebida, ao que se segue um momento de humor propiciado pelo facto de "Westminster" ser um nome conhecido do orador e Churchill refere que tanto ele como os alunos daquela faculdade aprenderam muito em instituições que têm Westminster no nome. Ainda na continuação dos cumprimentos e dos agradecimentos, o orador destaca o caráter único da situação em que se encontra: um visitante ser introduzido perante uma audiência universitária pelo próprio Presidente dos Estados Unidos – salientando que este lhe dera o privilégio de se dirigir à nação na sua presença, apesar de todos os deveres e responsabilidades permanentes inerentes ao seu cargo.

Após dizer que o Presidente Truman deseja que o orador fale com toda a liberdade e que dê os seus conselhos mais sinceros acerca dos tempos de ansiedade que atravessam, Churchill afirma que o fará sobretudo porque todas as suas ambições privadas que tinha enquanto jovem já terem sido atingidas – até superadas –, dando com isso a entender que não estava a agir em nome de nenhuma missão nem de nenhuma campanha pessoal (algo que é explicitado adiante). O que o autor descreve como "tempos de ansiedade" são as tensas relações entre as duas grandes potências saídas da Segunda Guerra Mundial (Estados Unidos e União Soviética) e o quanto essas tensões pairavam no ar e assustavam as populações que acabaram de sair de uma guerra absolutamente devastadora. Apesar de referidos aqui, os "tempos de ansiedade" serão mais explicitados e descritos adiante.

De seguida, Churchill refere o estatuto com o qual se encontra perante a audiência: como um simples orador, completamente desprovido de qualquer intenção sibilina ou em prol de qualquer missão diplomática. Considera ter capacidade para expor os problemas que assombram o mundo na "alvorada da absoluta vitória pelas armas" – por causa da sua longa carreira política – e tentar garantir que o sacrifício e o sofrimento vividos para alcançar a vitória não tenham sido em vão.

A passagem seguinte do discurso dá início à parte mais importante do mesmo: o elogio aos Estados Unidos e a defesa da aliança entre os povos anglófonos ("english-speaking people"). Destacando a sua posição no mundo – "pináculo do poder mundial" –, diz que é um momento solene para a democracia americana. Apesar disso, avisa que essa preponderância assumida vem anexada a grandes e inspiradoras responsabilidades. Além do sentimento de dever cumprido, o orador destaca que os americanos também devem sentir a ansiedade demanter o elevado nível de concretização. É importante relembrar que em 1946 os Estados Unidos eram a única potência nuclear. No entanto, Churchill diz que essa preponderância política é uma oportunidade não só para os Estados Unidos, mas também para o seu país: o Reino Unido.

Defende que a responsabilidade deve ser partilhada e que as decisões e políticas comuns devem ser guiadas pelos princípios da consistência, da persistência e da simplicidade de decisões – tal como aconteceu durante a Guerra.

Ainda falando sobre a Guerra, Churchill diz que os militares americanos agem sempre de acordo com as diretivas e prosseguem sempre a estratégia geral, o que, na opinião do antigo Primeiro-Ministro, contém sabedoria e leva a uma clareza de pensamento. Usando essa técnica nos tempos de então, a dita "estratégia geral" que deveria ser prosseguida era a segurança e o bem-estar, a liberdade e o progresso para toda a gente – não somente em ambos os países, mas pelo mundo fora. Essa segurança só é possível se as famílias estiverem protegidas dos dois grandes males, naopinião do orador: a guerra e a tirania. Estes dois males vão ocupar uma boa parte do discurso, porque Churchill falará detalhadamente deles e abordará outros tópicos relativos aos mesmos.

Explicando porque considera estes dois males incompatíveis com a segurança, a liberdade, o bem-estar e o progresso, Churchill recorre à história recente: a Europa e uma parte da Ásia haviam sido arrasadas, fruto de projetos de homens fracos e de impulsos agressivos de Estados poderosos para destruírem grandes áreas de civilização. Na opinião do autor, é sabido que quando há guerras, a maioria das famílias fica sem o seu "ganha-pão", que é o homem, porque este vai combater para a guerra; mas também as empresas perdem os seustrabalhadores que vão para o campo de batalha – perante estas ameaças, a vida das pessoas comuns fica completamente distorcida. Exposto este cenário, de seguida, Churchill refere que estremece ao visualizar o que milhões de pessoas estão a enfrentar e o que irá acontecer quando a fome atacar – destacando a "inestimável dor do ser humano". Voltando a falar sobre os países anglófonos, diz que o dever destes é evitar uma nova guerra que viesse piorar ainda mais as condições de vida das pessoas (o primeiro mal que fora mencionado).

Elaborando mais sobre a prevenção da guerra e retornando à alegoria da "estratégia geral", refere que o passoseguinte à definição da estratégia era a estruturação do método. Perante esta questão, Churchill diz que há umconsenso generalizado: uma organização internacional. A ONU já tinha efetivamente sido criada, em 1945, masainda estava na sua fase inicial, sendo vista como a sucedânea da Liga das Nações – com a adição definitiva dos Estados Unidos, o que lhe dá um poder diferente do que tivera a Liga das Nações. Desta vez, os Estados deveriam assegurar que a organização internacional daria resultados e que deveria ser um "Templo da paz" que resulte, ultimamente, no fim da guerra. Esta perspetiva idealista demonstrada pelo autor nãoera diferente da visão que vigorara aquando do surgimento da Liga das Nações.

No entanto, antes de chegar à fase em que se "penduram os escudos" e se renuncia completamente à guerra, o autor diz que é preciso existir a certeza de que o "Templo" está construído em pedra e não em areia. Por outras palavras, antes de se proceder à desmilitarização dos países e à renúncia ao armamento de defesa (visto que o Templo asseguraria o fim da guerra), era necessário garantir que este estava bem construído. De forma sibilina, está aqui implícita uma crítica ao comportamento dos aliados aquando da criação da Sociedade das Nações e da subsequente desmilitarização, o que fez com que estes estivessem em contramão quando o rearmamento alemão começou. De facto, o "Templo" estava construído em "areia" e não em "pedra". Ainda neste âmbito, o autor profereque acredita ser possível alcançar o propósito comum da paz duradoura, mas diz que esse caminho será longo e difícil – mas se os países se mantiverem unidos, o objetivo será alcançado. Contudo, deixa implícita mais uma crítica, desta vez dirigida aos americanos, quando diz: "se nos mantivermos unidos como estivemos nas duas Guerras Mundiais – embora não, infelizmente, no intervalo delas". De facto, está aqui explícita uma crítica ao facto de os Estados Unidos não terem integrado a Sociedade das Nações. Nesta parte do texto, o autor deixa explícita pela primeira vez a sua crença no ideal da paz perpétua.

Continuando com a sua visão sobre a Organização das Nações Unidas, Churchill apresenta uma proposta para efetivar a sua capacidade de ação: diz que podem estabelecer-se tribunais e magistrados, mas a Organização não funcionará sem "xerifes". Ou seja, a ONU tem de contar com forças armadas internacionais próprias para poder ser mais eficaz a atuar. Embora seja uma questão que tem de ser feita progressivamente, Churchill diz que é urgente começar a tratar disso, e, na sua perspetiva, cada Estado deveria delegar um certo número de esquadrões aéreos para o serviço das Nações Unidas – esquadrões esses que seriam treinados e preparados no território do próprio país, mas estariam sob comando das Nações Unidas; teriam uma localização rotativa; usariam distintivos do seu respetivo país e não lhes seria exigido que agissem contra o seu país de origem.

Apesar de considerar que as Nações Unidas devem ter forças armadas próprias, afirma ser imprudente confiar o conhecimento e a experiência das armas nucleares a uma organização "tão jovem". Não só por ser uma organização recente, mas também porque até então só o Canadá, os Estados Unidos e o Reino Unido possuíam o conhecimento acerca de tais armas; por outro lado, o mundo estava demasiado agitado e "desunido" para se correr o risco de alargar o número de países com conhecimento destas armas – o que Churchill e os políticos dos restantes países provavelmente não tinham conhecimento era que os soviéticos já estavam a trabalhar no desenvolvimento da sua primeira arma nuclear e que souberam da existência deste tipo de arma ainda antes dos americanos lhes terem contado ou de esta ter sido usada sobre o Japão em 1945. A perspetiva de Churchill acerca das armas nucleares é bastante unilateral e está explicitada no discurso: ninguém no mundo está ansioso ou temeroso por esta arma estar nas mãos dos americanos, mas se fossem os soviéticos a deter esse conhecimento, o mundo estaria em perigo. De facto, Churchill afirma adiante que seria difícil o mundo estar tão tranquilizado se fossem os comunistas ou osEstados fascistas a deterem o conhecimento destas armas, e diz que os Estados totalitários usariam o poder mortífero desta arma para impor o totalitarismo sob os Estados democráticos. Esta visão enquadra-se bastante bem com o teor do discurso e com o seu caráter idealista e liberal: a ideia de que as democracias não fazem a guerra, e por isso, estas podem deter armas nucleares, porque o mundo estará sossegado, por oposição aos regimes totalitários.

Ainda expendendo o tópico das armas nucleares, o ex-Primeiro-Ministro britânico diz que os países anglófonos têm espaço para respirar e organizar-se antes de se depararem com um cenário em que os soviéticos detivessem o mesmo tipo de arsenal (o que demonstra que Churchill sabia que, eventualmente, isso aconteceria), e mesmoquando essa altura chegasse, o cenário mais provável, se os esforços fossem bem direcionados, era os EstadosUnidos deterem uma superioridade que lhes permitisse não recuar perante o seu uso ou ameaça de uso – na perspetiva de Churchill, as armas nucleares serviam para ameaçar e não para se usarem, ou seja, eram "forças de dissuasão".

Finalmente, quando a "irmandade" dos Homens estiver construída, confiar-se-á este conhecimento à Organização das Nações Unidas.

Falando sobre o segundo perigo que havia mencionado anteriormente – a tirania –, refere mais uma vez o quanto esta afeta sobretudo as pessoas comuns. Nesta parte, a sua análise incide sobre existirem pessoas no mundo que não desfrutam das mesmas liberdades do que aquelas que habitam no império britânico – sendo que algumas das pessoas que não usufruem dessas liberdades habitam em alguns Estados muito poderosos. Nesses Estados, o controlo e o poder são exercidos sem restrições e são exercidos ou por ditadores ou por oligarcas que operam através de um partido político privilegiado e de uma polícia política. Perante a sua descrição, parece muito claro que Churchill se refere à União Soviética e aos seus países satélites com regimes comunistas que estavam então a emergir na sua zona de influência – o Leste da Europa. Contudo, o orador refere que não é altura nem é dever de os países anglófonos intervirem nos assuntos internos de Estados que não foram conquistados por si durante a guerra.

Sobre este tópico, impõe-se contextualizar o que é referido. Aquando do fim da Guerra, a União Soviética alargou as suas fronteiras e fê-lo, segundo variados autores, sob o consentimento dos aliados (a juntar à marcha do Exército Vermelho até Berlim). O historiador Ian Kershaw diz queos americanos e os britânicos concordaram (em Ialta, 1945) que a Polónia seria incluída na área de influência soviética; já a professora Fernanda Neutel vai mais longe e diz que desde 1943 que os aliados discutiam com ossoviéticos os países abrangidos na área de influência. Essa divisão culminou em Potsdam com a divisão da Alemanha. De facto, a União Soviética tornou-se numa superpotência graças à sua vitória militar (KERSHAW, 2019).

Churchill também fala sobre o exercício do poder através de partidos privilegiados e da existência de polícias políticas. A este propósito, Anne Applebaum diz que a União Soviética conseguiu exportar as técnicas do totalitarismo para os países da sua área de influência, nomeadamente: criação de polícias políticas estritamenteligadas ao NKVD (polícia política da URSS), controlo de ministérios importantes, confisco e redistribuição de terrase controlo dos meios de comunicação (sobretudo rádio, porque era universal).

Retomando o discurso, Churchill diz em seguida que os países anglófonos não devem parar de proclamar osvalores que defendem e que têm grande expressão no mundo anglo-saxónico – entre eles, o valor da liberdade. Churchill defende que os habitantes dos países que estão naquele momento a viver sob os regimes que descreveu acima devem ter o direito constitucional a eleições livres, com voto secreto e devem poder escolher o caráter e aforma de governo que pretendem; deve vigorar a liberdade de expressão e de pensamento; os tribunais e o poder judicial devem ser livres. Esta é, segundo Churchill, a mensagem que os americanos e os britânicos devem propalar.

Sobre esta vertente dos valores, Henry Kissinger expõe no seu livro "A Diplomacia" que, para Estaline, a obsessãodos países ocidentais com os valores morais era algo incompreensível. O autor usa como exemplo o facto de Estaline não perceber o porquê de os países ocidentais defenderem a existência de eleições livres na Polónia,sendo que este não estava na sua área de influência nem os ocidentais tinham qualquer tipo de interesse no país em questão.

Depois de aprofundar o que considera serem os "dois males", Churchill diz que há inconvenientes que podem causar muita ansiedade a quem os vive e esses males podem transcender a tirania e a guerra. Noentanto, o autor mostra-se crente na ideia de que sem guerra e tirania, a ciência e a cooperação são capazes de, num futuro próximo, trazer ao mundo um alargamento do bem-estar material como nunca fora visto antes. Na perspetiva do autor, os anos de guerra serviram de "aprendizagem" e de aperfeiçoamento para as ciências – o que é factual, analisando os desenvolvimentos científicos e tecnológicos que foram alcançados na tentativa das nações se superarem umas às outras (tendo o auge sido o uso da energia nuclear para fins bélicos). O que é proposto é que esses meios seja usados em prol do bem-estar geral. Apesar de o autor reconhecer que esta é uma fase difícil, tudo leva a crer que essa fase passará rápido e que os países superarão as dificuldades do rescaldo da Guerra, dizendo que o uso da ciência para incrementar o bem-estar só não acontecerá por vontade do ser humano.

No passo seguinte, Churchill refere o que diz ser o motivo do seu discurso: nem a prevenção da guerra nem a ascensão da Organização das Nações Unidas serão alcançadas sem a associação fraternal dos povos anglófonos. Com isto, o autor não se refere necessariamente a um crescimento de uma relação de amizade e de compreensão mútua, mas sim à continuidade das relações estreitas entre as chefias militares, o que levará a um estudo mais aprofundado dos potenciais perigos, similitude de equipamento militar e intercâmbio de militares; devem manter-se as atuais infra-estruturas militares espalhadas pelo mundo e que possam ser usadas por ambos os países –o que duplicará a mobilidade das Marinha Americana e da Força Aérea e levará, potencialmente, a uma redução de custos por parte da BEF (British Empire Forces).

Para corroborar, dá o exemplo do Acordo de Defesa Permanente que existe entre os Estados Unidos e o Canadá – país muito devoto à Commonwealth e ao Império – e refere que este acordo é bastante eficaz, advogando de seguida que esse se deve alargar a toda a Commonwealth britânica com reciprocidade total. Na opinião do antigo Primeiro-Ministro, só assim é que será garantida a segurança mútua e serão capazes de trabalhar juntos em proldas causas que consideram importantes. O autor deixa explícito que acredita que, eventualmente, chegará o princípio da cidadania comum. O orador deixa claro que, para si, esta associação fraternal seria benéfica para a Organização das Nações Unidas e para o seu propósito – seria até a única forma de esta atingir o seu potencial total. Segundo a sua perspetiva, associações especiais entre membros das Nações Unidas cuja intenção é a da mera cooperação seriam bastante benéficas para o sucesso da Organização.

O que fica sugerido nesta parte do discurso é que Churchill pretende manter o estatuto do Império Britânico e da Commonwealth no mundo, numa altura em que está a recuperar da Guerra. De facto, tendo o Reino Unido sido umdos vencedores da Guerra, sofreu com a Guerra e ficou em desvantagem face ao aliado transatlântico. Certamente um estreitamento das relações com os Estados Unidos seria benéfico para a sua posição no mundo e mais ainda se a Commonwealth também assumisse um papel mais preponderante.

Retomando a ideia do "Templo da paz" que fora anteriormente referida no discurso, o autor diz que este será construído pela união dos trabalhadores e com base nos seus propósitos e nas suas necessidades. Só assim é que será construído - e construído de forma definitiva –, porque a outra opção é o mundo entrar em guerra pela terceira vez, que seria objetivamente mais rigorosa e mais desastrosa que as outras duas. Recorrendo a uma metáforacoloquial, Churchill diz que "a Idade da Pedra pode regressar nas asas brilhantes da ciência": o que podem agora parecer bênçãos para a humanidade, talvez leve à total destruição da mesma. De modo a evitar isso, o orador recomenda que não se deixe que os acontecimentos se alastrem: se for para existir uma associação fraternal, que isso seja feito de forma que o mundo repare e que sirva de alicerces à paz mundial.

Como os discursos de Churchill são meticulosamente pensados, a referência "aos trabalhadores de todo o mundo" pode suscitar diversas interpretações. Por um lado, o que parece ser dito é que a paz duradoura – sob a forma de um "Templo" – será construída pelas bases da sociedade, e só assim ficará bem assente. Por outro lado, ao referiros seus interesses, pode ler-se que é preciso atender aos interesses das bases da sociedade porque, no passado, quando os interesses e as questões do seu quotidiano foram prejudicados, os movimentos totalitários captaram estas pessoas.

Agora inicia-se o que pode ser considerado como sendo a segunda parte do discurso, que ficou famosa pelo uso da expressão "Cortina de Ferro". De facto, esta parte inicia-se com uma referência ao cenário na Europa de Leste: começa por referir que "uma sombra" desceu sob o cenário "iluminado" pela vitória aliada. Essa sombra metafórica significa o desconhecimento sobre as intenções da União Soviética e da Internacional Comunista para o futuro imediato e quais são os limites para as suas tendências prosélitas e doutrinárias. Apesar disso, Churchill refere que nutre grande admiração e respeito pelo povo russo e pelo Marechal Estaline – sentimentos que diz serem comuns aos britânicos e americanos –, e, por isso, pretendia manter uma relação estável, apesar de todas as diferenças. Mostra também compreensão, ao referir que percebe a necessidade que os russos sentem para manter as suas fronteiras ocidentais seguras e livres do perigo de uma agressão alemã. Mostra-se recetivo, ao dizer que a União Soviética é bem-vinda ao seu merecido lugar entre as nações vencedoras e, acima de tudo, mostra-se disponível para manter contactos constantes, frequentes e progressivamente mais numerosos entre os russos e os aliados transatlânticos. Apesar disso, o antigo Primeiro-Ministro diz que é seu dever retratar os factos tal como ele os vê – os factos sobre o atual cenário europeu.

"De Stettin, no Báltico até Trieste, no Adriático, uma cortina de ferro desceu sobre o Continente. Atrás dessa linhaestão todas as capitais dos Estados ancestrais da Europa Central e de Leste". No seu relato, Churchill enumeravárias situações que ocorrem na área da Europa de Leste, das quais destacarei as mais relevantes. Churchill expõe geograficamente as dimensões da cortina de ferro: de Stettin (Polónia) até Trieste (Itália); diz que por trás dessa linha ficaram algumas das cidades mais importantes da Europa e que passaram a estar dentro da esfera soviética, sujeitas a níveis elevados de controlo a partir de Moscovo; segundo o autor, somente a Grécia seria livre de decidir o seu futuro, porque se encontrava sob observação americana, britânica e francesa (o facto de a Grécia não integrar o dito "Bloco de Leste" leva a historiadora e jornalista Anne Applebaum a considerar que o termo "Bloco de Leste" é um termo político e não geográfico); os partidos comunistas, outrora pequenos nos Estados da Europa de Leste, assumiram então a preponderância e muito poder, procurando obter um poder totalitário; os governos policiais surgiam em todos os sítios e, à exceção da Checoslováquia, não havia democracia pura; os russos tentavam criar um partido quase- comunista na região da Alemanha que estava na sua zona de ocupação. No final,admite que em junho de 1945, os exércitos americanos e britânicos concordaram em retirar-se até 150 milhas para oeste em alguns sítios, ao longo de uma frente de 400 milhas (como estava combinado).

Analisando um pouco mais detalhadamente a questão do aumento da presença dos partidos comunistas nos países da Europa, é importante referir que, apesar do que Churchill disse, os partidos comunistas cresceram nos anos pós-guerra devido ao descontentamento com as democracias liberais e com o sistema capitalista. Segundo ohistoriador Archie Brown, a derrota do nazismo gerou, na Europa de Leste, uma grande repulsa pelo nazi-fascismo, mas também pelo sistema capitalista e pelos seus defeitos – que, nos anos 30, ajudaram à ascensão dos regimes totalitários fascistas.

A democracia checoslovaca a que Churchill alude, nas eleições livres de 1946 (americanos e soviéticos retiraram-se do território antes das eleições) os comunistas obtiveram uma maioria de 39% dos votos. Apesar de lhes conferir alguma legitimidade democrática, foi insuficiente para governar. Mais uma vez, o resultado não foi surpreendente, por causa das poucas condições de vida da população.

Voltando ao discurso, Churchill aprofunda um pouco o cenário de criar uma Alemanha pró- comunista nas áreas soviéticas. Diz que, acontecendo, isso colocaria sérias dificuldades às zonas britânicas e americanas, e, além do mais, daria a possibilidade aos alemães de se "leiloarem" entre as democracias ocidentais e os soviéticos – o que efetivamente daria bastante poder aos alemães.Perante estes factos, Churchill conclui dizendo que aquela não era a Europa pela qual os britânicos lutaram para construir, nem era a que constituía a essência da paz perpétua.

No passo seguinte do discurso, Churchill diz que a segurança do mundo exige um novo tipo de unidade europeia – unidade essa da qual nenhuma nação poderá ser excluída. Para Churchill, as Guerras Mundiais emanaram dasquerelas entre as raças fortes da Europa e, por duas vezes, os Estados Unidos foram arrastados por forças "irresistíveis" para as guerras a tempo de garantirem a vitória da causa justa. Para o antigo Primeiro-Ministro, o mais importante era trabalhar para a pacificação geral da Europa, dentro da estrutura das Nações Unidas e de acordo com a sua Carta. Esta unidade defendida remete para uma ideia de Europa que Churchill viria a defender no discurso de Zurique, em setembro do mesmo ano, e essa ideia correspondia à proposta dos Estados Unidos da Europa. Na ideia de não deixar nenhuma nação excluída, pode-se detetar uma vontade de reintegrar a Alemanhano contexto europeu, sendo possível considerar Churchill o primeiro advogado da reconciliação com a Alemanha no pós-guerra.

Retomando a cortina de ferro, o autor refere que também o lado ocidental da Europa enfrentava causas que podiam gerar alguma ansiedade, nomeadamente as exigências territoriais do Marechal Tito sobre território italiano (Trieste);também o futuro da França deixa o autor um pouco receoso, apesar de continuar a mostrar-se esperançoso. Mais doque tudo, o que preocupa o orador é o surgimento de quintas colunas comunistas (fações que dizem defender osinteresses nacionais, mas que secretamente cooperam, neste caso, com Moscovo) em territórios longe da Rússia, mas que recebem diretamente ordens da capital. Segundo o autor, só nos Estados Unidos e na Commonwealth é que o comunismo está numa fase embrionária. No resto dos países, os partidos e as quintas colunas comunistasconstituem uma ameaça à civilização cristã. O autor não deixa de considerar que isto são factos sombrios, para se contar no rescaldo de uma vitória alcançada com tanta camaradagem e de uma luta pelas causas da liberdade e da democracia. Mas mais uma vez, Churchill considera que ainda é possível agir a tempo. Também no extremo oriente se viviam tempos de ansiedade, segundo o autor. Esse clima derivava, em parte, do acordo feito em Ialta, cujas expectativas de duração da guerra apontavam para que a guerra contra a Alemanha durasse durante o verão e outono de 1945 e a guerra contra o Japão durasse mais 18 meses do que esta.

Perante o cenário sombrio que o mundo enfrenta, Churchill sentiu a obrigação de o retratar. Para demonstrar o ambiente social que sente que vigora então, recorre ao contexto após a assinatura do Tratado de Versalhes e faz a distinção. Ou seja, o orador descreve que após o fim da Primeira Guerra Mundial havia grandes esperanças relativamente à perspetiva do fim das guerras e do sucesso da Sociedade das Nações; por oposição, o autor diz nãodetetar os mesmos sentimentos nem as mesmas esperanças. Apesar disso, Churchill refere que descrê da inevitabilidade de uma nova guerra, muito menos da sua iminência: mais uma vez, refere que a situação está nas mãos de quem detém poder e que essas pessoas detêm o poder de salvar o futuro – e é por isso que Churchill sente a obrigação de falar. Na sua opinião, a União Soviética não deseja a guerra, apenas os frutos desta (expansão de poder e alargamento das suas doutrinas) e, perante isso, o Ocidente tem de se impor e acima de tudo impor os valores que defende – tem de agir enfrentando os problemas e não advogando uma política de apaziguamento. Quanto mais tardar o vincar da sua posição, mais difícil será agir e maiores serão os perigos.

Este excerto do discurso é o que Henry Kissinger chama um "murro na mesa diplomático". Segundo a sua análise, o diplomata norte-americano considera que Churchill defendia uma posição definitiva, enquanto os seus aliadosestavam mais interessados em fortalecer-se para uma possível guerra. O que fica explícito no texto do discurso é que Churchill defende a assunção de uma posição firme e que só assim é que os problemas poderão serenfrentados. Churchill critica também as políticas de apaziguamento, no que toca à atuação britânica antes do eclodir da Segunda Guerra Mundial.

Numa perspetiva pessoal, Churchill diz que o que os russos mais respeitam é a força e não têm o mínimo respeito pela fraqueza militar. Na sua opinião, a doutrina da "balança do poder" não se aplica neste caso, porque o Ocidente não pode ceder à tentação de tentar vencer pela força – pelo contrário, o Ocidente deve manter-se unido e agarrar-se fielmente aos princípios da Carta das Nações Unidas, porque ao propagar esses princípios, é pouco provável quealguém os viole. Se o Ocidente não seguir esta estratégia, é bastante possível que o mundo sofra uma catástrofe. Mais uma vez, Churchill demonstra uma visão idealista da realidade internacional, ao depositar muita confiança nosprincípios da Carta das Nações Unidas. Com efeito, é inegável que se o Ocidente não cedesse às tentações de usar a força, seria mais possível alcançar uma paz longa.

Mais uma vez aludindo ao seu passado, Churchill relembra que, antes da Segunda Guerra Mundial, tinha previsto o que viria a acontecer e, quando alertou para isso, os seus conterrâneos não lhe deram atenção. Até 1933 ou 1935,seria bastante fácil salvar a Alemanha do projeto de Hitler. Simultaneamente, nunca houvera uma guerra tão fácil deprevenir como a que tinha acabado recentemente, bastava agir a tempo. Esta retrospetiva serve para fazer o auditório refletir e para que se impeça que isso se suceda no pós-Segunda Guerra Mundial. O orador inclusive dizcomo se pode evitar tal cenário: assegurando um bom entendimento com a União Soviética sob a autoridade dasNações Unidas e mantendo um bom entendimento por muitos anos, apoiado pela força do mundo anglófono. Esta solução é a que o autor chama "Sinews of Peace", o nome do discurso, que se pode traduzir literalmente para "Tendões da paz".

O parágrafo final do texto é dedicado ao tema principal do discurso: a força do povo anglófono. O antigo Primeiro-Ministro recomenda que não se subestime o poder do Império britânico e da Commonwealth, apesar das dificuldades sentidas no pós-Guerra: essas dificuldades serão ultrapassadas e, daí a meio século, ver-se-ia dezenasde milhões de britânicos pelo mundo fora unidos na defesa das suas tradições, do seu modo de vida e das causas mundiais que defendem. Se adicionarmos a população da Commonwealth à dos Estados Unidos – com toda a cooperação que isso implica –, haverá um sentimento generalizado de segurança.

Para Churchill, o futuro será próspero se se aderir aos princípios da Carta das Nações Unidas; se se progredir na forma de restringir as ambições sobre territórios de terceiros e sobre a liberdade de pensar dos habitantes dosmesmos; se a moral britânica, as suas forças materiais e as suas convicções se unirem à sua associação fraternal. A prosperidade será para todos e durará muitos anos.


Conclusão

Analisado o discurso, vemos que há temas que são recorrentes, nomeadamente a relação com a União Soviética e os princípios das Nações Unidas. Mas o tema principal do discurso é a associação fraternal entre os povos anglófonos e o benefício que isso dará ao mundo. A ideia que passa da mesma associação é, uma vez mais, coerente com o caráter idealista de muito do que é dito no decorrer do discurso.

Este caráter idealista é uma boa síntese do discurso, embora não se cinja a isso. A visão liberal de Churchilldemonstrada neste texto surge como resposta a questões da época – época essa cuja preocupação principal, como se vê pelo texto, era não repetir os erros do pós-Primeira Guerra Mundial.

Também fica bastante explícito algo que marca a carreira política de Churchill: a crença numa superioridade do povo britânico. No presente discurso, essa crença é demonstrada nas passagens em que elogia os valores moraisbritânicos e a forma como esses contribuiriam para a eventual paz duradoura.

Mais do que o elogio ao povo britânico, também é possível detetar muito autoelogio e um certo ajuste de contascom o passado. Em várias passagens, Churchill refere que não lhe deram a atenção que deveriam ter dado e que, por isso, a catástrofe aconteceu. De certa forma, Churchill usa essa questão para se apresentar como uma pessoaque vale a pena ser ouvida, a um ponto quase profético.

Precisamente devido à sua carreira política e à relevância que tinha no cenário político internacional – apesar de já não ser, na prática, um ator relevante –, alguns autores e jornalistas considerassem este discurso como o "ponto de partida" da Guerra Fria.


Bibliografia e webgrafia

https://www.publico.pt/2021/03/05/mundo/noticia/cortina-ferro-desceu-europa-churchill- comecou-guerra-fria-1952940

https://www.historyonthenet.com/authentichistory/1946-1960/1- cworigins/19460305_Winston_Churchill-The_Sinews_of_Peace.html - Texto usado

Applebaum, A. (2012). "Iron Curtain: The crushing of Eastern Europe". Penguin Books Brown, A. (2010). "Ascensão e Queda do Comunismo". Dom Quixote

Kershaw, I. (2019). "À Beira do Abismo". Dom Quixote 

Kissinger, H. (1998). "Diplomacia". Gradiva

Neutel, Fernanda (2019). "A Construção da União Europeia". Edições Sílabo


[Este ensaio é uma adaptação de um trabalho realizado para a Unidade Curricular de Integração Europeia: Teorias e Instituições]



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