Ucrânia, 2 anos, um olhar

25-02-2024

Em Fevereiro do ano passado, recebi um gentil convite por parte dos responsáveis do Núcleo Europa Hoje, Luís Rodrigues e João Miranda, também eles pertencentes a esta casa, com o objectivo de me impelir a procurar apresentar, de forma inteiramente livre, uma perspectiva ­— ou um desabafo — sobre o primeiro aniversário do escalar do conflito em território ucraniano. De bom grado, agradeci a amabilidade e escrevi um artigo que foi posteriormente publicado no site oficial do já referido núcleo. Contudo, foi publicada uma versão errada, aqui, anterior, pelo que vos remeto também para a leitura da versão final e correcta neste site.

Este artigo não será, por isso, uma repetição daquela que foi a deambulação pela qual enveredei quando procurava retirar conclusões breves sobre a invasão russa no ano passado. Será, pois, eventualmente mais desinteressante e de menor qualidade para aqueles que por estes cantos da internet buscam observações perspicazes do actual paradigma ucraniano.

Há dois anos, a chama que parecia animar o espírito da solidariedade internacional foi ateada de forma clamorosa. Não foram poucos aqueles que de forma profusa manifestaram o seu inabalável e incansável apoio ao país invadido. Essa chama espoletava em nós aquilo que eu na altura descrevi como a analogia da luta entre David e Golias. A ideia, porventura ingénua, aliás, absolutamente ingénua, de um sentimento de puro altruísmo e solidariedade internacional do Ocidente para com a Nação agredida, permeou a sociedade portuguesa como um todo (com as suas devidas e coerentes excepções). Passados dois anos do escalar da invasão, este sentimento parece ter perdido o mesmo fulgor. Notem, estou naturalmente a abordar este assunto de um ponto de vista mais emotivo e subjectivo, menos analítico e objectivo, a pousar o olhar numa aura de pendor sentimental e dirigida a um determinado aspecto da percepção desta guerra. Não estou, por isso, a afirmar que aqueles que há dois anos defendiam x, este ano defendam y (no sentido de y estar no polo oposto de x). Na verdade, estou apenas a realçar a percepção de que, em termos gerais, a opinião pública perdeu o interesse na adopção desse espírito inabalável. A intelectualização da guerra e dos seus horrores, quando alimentada ao longo de um extenso período, tende a gerar sintomas semelhantes aos da administração de um anestésico. Cansa. A defesa da democracia e da liberdade de um povo cansa. A inabalável e estoica defesa do sempre tão reconfortante bipolarismo "bom contra mau" cansa. A interminável sequência de imagens de horror e sofrimento cansa. O sofrimento alheio cansa. Cansa. Este cansaço narcotiza o indivíduo, entorpece a retórica, mesmo daquele que procura lutar a todo o custo por manter a memória do sentimento, do espírito inflamado.

O feuer inflamado ressurge de um longo período de enfado. De uma indolência que testou as nossas fronteiras de resiliência, a indolente inércia provocada por um Ser invisível ao olhar despido de ferramentas artificiais. Novamente, o pequeno David multiplicou-se, procurando (não, não estou a dizer que o Coronavírus é dotado de intencionalidade) desalmar Golias. Claro que se trata de uma analogia algo bacoca. Há limites de racionalidade e de bom senso para a sua aplicabilidade. É perfeitamente natural olharmos para este panorama bélico e conferir ao pequeno David as características de um Golias.

Saindo aqui um pouco da esfera do estritamente metafórico e concluindo através de uma breve incursão por uma deambulação mais analítica de alguns aspectos do conflito — eu sei, garanti em cima que não o faria; menti. Penso que seria interessante fazer notar aquele que considero ser um brevíssimo, mas curioso artigo publicado pelo Center For Arms Control And Non-Proliferation, The Ukraine War After Two Years — A Lesson From the Past, escrito por John Erath, o Senior Policy Director deste instituto. Neste, Erath, embora talvez de forma algo nebulosa, procura descrever aquilo que ele reconhece como paralelismos existentes entre a agressão russa contra a Ucrânia e uma das mais sangrentas batalhas da Grande Guerra, a batalha de Verdun. Para Erath, não é só a proximidade das datas — o início do conflito em Verdun dá-se em 21 de Fevereiro de 1916 — que o insta a escrever. O Senior Policy Director começa por destacar o simbolismo da escolha de Verdun como local a atacar por parte das forças germânicas. Afirma que os alemães procuraram direccionar um ataque massivo nesta cidade, forçando os franceses a enviar um número proporcionalmente semelhante para sua defesa. O império alemão era industrialmente mais capaz, pelo que uma batalha de longa duração neste local levaria à exaustão dos recursos militares franceses, amputando-a [França] de recursos bélicos para se defender noutras frentes. Esta convicção de um total investimento francês nesta cidade prende-se com o conhecimento que os generais alemães possuíam da importância de Verdun na guerra franco-prussiana de 1871, cuja fortaleza foi a última a cair — tornou-se um símbolo de resistência. Portanto, o objectivo dos alemães em Verdun não era o de conquistar mais território, mas sim o de matar o maior número de pessoas possível. Analogamente, e viajando agora para o século XXI, Erath destaca Avdiivka, uma cidade no oblast de Donetsk, simbolicamente relevante para a Ucrânia, pois foi aqui que detiveram o avanço russo, em 2014. Pese embora o facto de esta cidade estar grandemente destruída, Zelensky parece procurar instigar o investimento de recursos militares para repelir os ataques russos. O autor realça também o natural valor simbólico da mesma para a Rússia — o valor propagandístico que surge na sequência da captura de uma cidade tão importante para a república ucraniana. Aqui, é possível que os estrategas russos pretendam, assim como os homólogos alemães em 1916, dar origem a um massacre.

Um outro aspecto que se tornou patente com o desenvolvimento desta guerra foi o claro intento do regime de Putin em aniquilar a cultura ucraniana. Há seis dias, na National Public Radio (NPR) norte-americana, Kateryna Iakovlenko, editora de um site de reportagens artísticas — com uma exposição artística actualmente em exibição em Lviv —, asseverou o seguinte: "(...) I also perhaps need to emphasize that this war is also about culture and against culture. When you see how many institutions are targeted by the weapons and how Russia destroyed museums, how they stolen our art pieces from museums, and how do they change the narrative about Ukrainian history and history of art".

Noutro ponto, tal como relata Shaun Walker no The Guardian, ao longo da "frontline, Ukraine is on the defensive, short of ammunition and soldiers". Os oficiais ucranianos culpam a escassez de munições fornecidas pelo Ocidente. Como referi anteriormente na abordagem subjectiva e emotiva da guerra, o "mood is very different from that of a year ago, when amid the horror Ukrainians remained buoyed up by the extraordinary consolation of national society, and looked forward to the swift liberation of all territories occupied by Russia". No fundo, a ideia de que a primeira fase da Guerra assistiu à unidade de todos os segmentos da sociedade, que teve como consequência clara a criação de uma poderosa identidade ucraniana e o despertar de um sentimento de orgulho pela nacionalidade ucraniana. Walker cita Natalia Kryvda, historiadora: "It was something very beautiful, but I'm worried that this unity is starting to crack now".

Com a perspectiva de um futuro corte radical no apoio americano e com uma Europa sem autonomia de defesa, o próximo ano poderá ser o mais difícil para a Ucrânia. Walker refere que, actualmente, encontrar indivíduos que estejam dispostos a combater na linha da frente é muito difícil: "It was one thing to sign up when it seemed like the Ukrainian army might advance and retake all the lost territory swiftly and triumphantly. Now, the calculation looks different". Muitos, segundo consta, escondem-se em casa por medo de serem recrutados na rua. Este jornalista conclui afirmando que uma vitória total do Império Russo — novamente, a mesma piada sebosa — sobre a Ucrânia parece ser um objectivo inatingível, mas não se esquece de referir que uma vitória total da Ucrânia, com recuperação do território anexado em 2014, também não parece estar estampado nas cartas.


António Pescão

Webgrafia: https://europahojeeu.wixsite.com/europa-hoje/post/1a-as-deambulações-de-uma-efeméride https://cpluz.substack.com/p/as-deambulacoes-de-uma-efemeride
Núcleo de Estudos Europeus da Universidade de Lisboa
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